O clássico de combate*
por Sandra Vasconcelos
Jane Austen em retrato do século XIX. Dizem que ela escrevia em pedacinhos de papel, um artifício ou mania desenvolvida pela timidez da escritora que nunca se sentiu à vontade diante dos seus escritos. |
O recolhimento à esfera doméstica, o horizonte acanhado, a
discrição da autora – nada faria supor que os romances de Jane Austen
(1775-1817) viriam a ocupar um lugar de destaque nas letras inglesas e
chegariam a ser considerados verdadeiros clássicos. No entanto, essas
narrativas de amor e casamento tornaram-se, ao longo do tempo, unanimidade de público
e de crítica e deram a Austen a fama que ela não conheceu em vida.
Se as oportunidades de desenvolvimento profissional e
intelectual eram reduzidas para as mulheres, principalmente para aquelas de sua
condição social, Austen soube traduzir essas limitações e transpor, para o
plano literário, uma experiência que era a de tantas jovens naquele momento de
transição entre os séculos 18 e 19.
Dessa maneira, no centro do enredo de seus seis romances
sempre haverá uma protagonista às voltas com escolhas das quais dependem seu
destino e seu futuro. Trata-se, em todos os casos, de romances de educação, nos
quais essas jovens mulheres são confrontadas com as possibilidades e os
constrangimentos impostos pelas normas morais e convenções sociais então
vigentes e passam por um processo de aprendizagem sobre si próprias, sobre os
outros e sobre a vida, que as devolve, ao final, mais maduras e mais
experientes.
Assim, concordando com Tony Tanner e ampliando sua
observação sobre um dos romances de Austen, seria possível pensá-los todos como
“dramas de reconhecimento”, à medida em que cada uma das protagonistas vive a
experiência do reconhecimento – “o ato através do qual a mente pode tornar a
olhar para uma coisa e, se necessário, fazer revisões e alterações até vê-la
como realmente é”.1
Por sobre um pequeno universo de “três ou quatro famílias em
uma aldeia” (carta à sobrinha, 1814), Austen reconstrói todo um mundo, no qual
as visitas, os bailes e os passeios são os espaços privilegiados onde se tecem
as relações sociais, e através do qual podemos vislumbrar problemas mais
fundos, que dizem respeito à condição feminina, ao dinheiro e à posição social
numa sociedade muito estratificada e presa às convenções.
Diálogos espirituosos
Seus romances foram descritos como comédias de costumes, uma
definição que não faz completa justiça ao olhar crítico e, às vezes, até ferino
que Austen lança sobre questões de conduta pessoal nesse mundo em que a
mobilidade social e as mudanças de fortuna passam a afetar decisivamente
indivíduos e famílias.
Que o casamento desempenha um papel crucial para certas
parcelas da sociedade fica patente já na frase de abertura de um de seus mais
famosos romances, Orgulho e
Preconceito (1813): “É uma verdade universalmente reconhecida que um
homem solteiro, de posse de boa fortuna, deve estar atrás de uma esposa”.
Austen resume assim, com uma boa dose de ironia, o
pensamento das mães das jovens casadoiras, em busca de um bom partido para suas
filhas, como é o caso, por exemplo, da senhora Bennet, mãe de cinco moças
ameaçadas de desamparo e pobreza, na eventualidade da morte do pai, se não
encontrarem um marido que possa lhes garantir o mesmo padrão de vida e a
permanência em sua classe social.
Sem se assombrar com essa possibilidade nem se intimidar
diante do esnobe Darcy, uma delas, Elizabeth Bennet, irá protagonizar cenas
deliciosas pelos diálogos espirituosos e cheios de “repartees”2. A
energia, a vivacidade, a inteligência e a racionalidade daquela que Austen
definiu como “uma criatura encantadora” fazem de Elizabeth um exemplo
paradigmático do que a escritora considerava essenciais como qualidades de uma
mulher e dizem mais a respeito da condição feminina do que rios de tinta gastos
em perorações feministas.
A questão da dependência, por sua vez, é trazida para o
centro do enredo de Mansfield Park,
no qual a protagonista Fanny Price, uma jovem de talento, porém de parcos
recursos, é acolhida pelos tios, Sir Thomas e Lady Bertram, no seio de sua
família. Vivendo na rica propriedade que dá título ao romance, Fanny terá
alguma oportunidade de desenvolver seu potencial enquanto enfrenta as
vicissitudes decorrentes das diferenças sociais, entra em contato com a
mundanidade e o cinismo dos irmãos Crawford e encara dilemas morais antes que
se reafirmem os valores e princípios que representa.
Ainda que muitos leitores a tenham julgado pedante e
antipática, a perspicaz Fanny mostra, como as demais protagonistas de Jane
Austen, uma densidade psicológica que supera quaisquer traços de presunção e
puritanismo que possam compor sua caracterização. Ela põe em evidência,
sobretudo, a condição de dependente a que estavam sujeitas tantas moças iguais
a ela, assim como os impedimentos concretos para seu desenvolvimento
intelectual.
“Pedacinho de marfim”
Cabe, portanto, toda uma experiência histórica “no pedacinho
de marfim (de duas polegadas de largura) no qual trabalho com um pincel tão
fino e que produz pouco efeito depois de tanto esforço” (carta ao sobrinho,
1816). E penso não estarmos muito longe da verdade ao sugerir que, ao
focar suas lentes nesse universo tão circunscrito, a romancista nos faculta a
visão dos mecanismos em ação numa escala muito mais ampla e abrangente, que vai
além das pequenas aldeias onde situa seus enredos e abarca o conjunto da
sociedade inglesa, exatamente porque eles revelam o funcionamento das
engrenagens do controle social sobre os indivíduos.
Do mesmo modo, expõem o servilismo de alguns, a arrogância
de outros, os interesses e privilégios de classe, as restrições – visíveis e
invisíveis – e os preconceitos que pautam o cotidiano e os modos de vida de uma
gama de pessoas representadas na galeria de personagens que povoam suas
histórias.
Leitora voraz de romances, como ela mesma se descreveu, Jane
Austen esteve muito atenta a seus predecessores e também aos autores
contemporâneos seus. Se, conforme Vivien Jones sugere, “a expressão ‘criatura
racional’”, usada por Elizabeth Bennet, “vem diretamente de [Mary]
Wollstonecraft”3, há toda uma tradição literária à qual Austen pode
ser associada.
A começar por um de seus romancistas prediletos, Samuel
Richardson (1689-1761), cujo Sir Charles Grandison (1753-54) foi
leitura prezada por configurar um novo ideal de virtude masculina, que irá se
refletir, de algum modo, em seu Darcy, em Orgulho e Preconceito, e no seu
modo de composição das personagens, principalmente de suas protagonistas, das
quais explora o plano subjetivo e interior com a visão microscópica com que
Richardson sondava os dilemas sociais e morais dos seus.
De Henry Fielding (1707-54), outro fundador do romance
social inglês, ela parece ter herdado o olhar crítico e distanciado, de quem
observa os costumes e faz deles objeto de escrutínio e crítica, exibindo o
ridículo de certas convenções e comportamentos sociais. O viés da comédia de
costumes vem daí, mas também de sua contemporânea Fanny Burney (1752-1840), de
cujo romance Cecilia (1782) se diz ter emprestado a expressão
“orgulho e preconceito”.
A Abadia de Northanger,
por sua vez, escrito na década de 1790 mas só publicado postumamente, em
1818, é uma divertida paródia dos romances góticos, cuja popularidade, entre
1780 e 1820, fez deles verdadeiros best-sellers em sua época. Ali,
graças a uma heroína ingênua e crédula, Austen zomba abertamente daqueles que
confundem vida e ficção e alerta suas leitoras para os perigos da imaginação sem
freios e os efeitos deletérios do sentimentalismo.
Catherine Morland é uma ávida leitora dos “horrendos
romances góticos”, entre os quais o paradigmático The Mysteries of Udolpho (1794), de Ann Radcliffe
(1764-1823), e irá aprender, ao final de suas aventuras, a não se deixar levar
por fantasias e ilusões e a recobrar a razão e o bom senso, tornando-se apta,
por assim dizer, a assumir um comportamento maduro e racional, tão ao gosto de
sua criadora.
Jane Austen deixou-nos, portanto, um duplo legado, por nos
possibilitar uma visada da condição feminina naquela quadra histórica e pela
sua contribuição a um momento fundamental da constituição e consolidação
do romance na Inglaterra de inícios do século XIX.
Quanto à forma, cada um de seus romances é um exemplo de
controle absoluto da estrutura narrativa, de construção de personagens e de
articulação de um ponto de vista – uma pequena escultura entalhada no marfim.
Eis por que ela se tornou um clássico.
Notas:
1. Tony Tanner. “Introdução”. In: Austen, Jane. Orgulho e preconceito. São Paulo:
Penguin Classics Companhia das Letras, 2011, p. 45.
2. Sucessões ou trocas de réplicas inteligentes; pugilatos
verbais leves e divertidos.
3. Vivien Jones. “Prefácio”. In: Austen, Jane. Orgulho e preconceito. São Paulo:
Penguin Classics Companhia das Letras, 2011, p. 25. Mary Wollstonecraft
(1759-1797) foi uma das pioneiras na defesa dos direitos das mulheres e
tornou-se famosa a partir da publicação de um ensaio com esse título, em 1790.
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Em meados de janeiro de 2013 fizemos uma espécie de breve concurso para os que seguem o Letras in.verso e re.verso no Facebook; a proposta é que escreveriam uma resenha para o livro Orgulho e preconceito que cumpre seu bicentenário no dia 28 de janeiro de 2013. Foram submetidos três textos, os quais, nenhum deles foi selecionado como adequado para publicação. Critérios simples como avaliação crítica do romance analisado, coesão e coerência textuais foram dispensados pelos autores. Foi então que decidimos, reproduzir o texto de Sandra Guardini T. Vasconcelos, professora titular de literatura inglesa na Universidade de São Paulo, publicado na edição 167 da Revista Cult, abril de 2012, e até onde sabemos inédito na web.
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