O cerco à literatura
Sou a favor da obscenidade e contra a pornografia. O
obsceno é franco, direto; a pornografia é o indireto, perifrástico. Acho que se
deve dizer a verdade apresentando-a friamente, de modo chocante se necessário,
sem disfarçá-la. Em outras palavras, a obscenidade é um processo purificador,
enquanto a pornografia aumenta a sujeira.
Arthur Miller
Um fato ocorrido semana passada no Rio de Janeiro juntou-se
com algumas inquietações minhas a respeito da estranha relação que sempre foi
dada por outras instâncias para com a literatura. Segundo matéria veiculada no
caderno de Cultura do jornal Estadão, de 17 de janeiro, a livraria Nobel de
Macaé, recebeu na segunda-feira a visita de dois policiais e de dois
comissários da Segunda Vara de Família, da Infância, da Juventude e do Idoso do
município com a ordem de recolher todos os livros com conteúdo impróprio para
menores de 18 anos que não estivessem em embalagens lacradas. A ordem partiu do
juiz Raphael Baddini de Queiroz Campos e foi assinada no dia 11 apoiando-se no
artigo 78 do Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990. Com argumento, o
juiz disse está agindo em defesa das crianças e adolescentes de Macaé. A
livraria disse que obras com conteúdos pornográficos sempre foram vendidas em
seções à parte, embora, a trilogia 50 tons de cinza, de E. L. James, acusa o
juiz, sempre foi disposta sem proteção, mesmo sabendo que esses livros são expostos,
dado o fenômeno de vendas, logo à entrada das livrarias e mesmo sem proteção.
Quando li esta matéria logo me pronunciei na minha página
pessoal no Facebook de que a atitude do juiz é coisa de quem não tem o que
fazer; "ou melhor querer aparecer. Ignorância. Petulância. A putaria está
escrachada em qualquer lugar e creio que seja tarefa dos pais acompanhar os
filhos da melhor forma possível nessa selva de peitos, bundas & Cia." - emendei. Retorno
a essas expressões para pensar sobre isso e sobre o caso do Rio de Janeiro.
No Brasil tem-se adotado com todos meios que forma permite
um zelo barato, nascido não aqui, mas importado de outros países como Estados
Unidos, que tem recebido o nome de politicamente correto. É uma onda: antes
desse caso, a própria literatura brasileira passou por outra cena ridícula (não
sei se o caso findou porque deixei de acompanhá-lo) com Monteiro Lobato. Um professor
denunciou e o Ministério da Educação acatou que As caçadas de Pedrinho, um dos
livros mais lidos entre as crianças brasileiras, era um livro racista. Até onde
acompanhei o bate-boca de desocupados chegou ao seguinte veredito, o livro
permaneceria como estava, mas receberia uma nota de rodapé justificando a expressão
apontada como racista.
As duas cenas têm suas particularidades, mas no fim de
contas integram esse movimento do politicamente correto. Eu aqui, já pergunto,
que tipo de gente estamos formando? Não basta termos criado (e vimos criando)
uma geração de despreparados para o mundo, que só veem o mundo por um olho, o
olho próprio, o do individualismo e esta leva de sujeitos estarem, à torto e a
direito nas ruas, de peito inchado batendo, pichando, esculhambando e até
matando os que não se encaixam no mundinho bitolado deles. Também agora o
Estado parece já se antecipar ao futuro em que possivelmente (para desgraça de
muitos) esses estarão no poder, e tem ensaiado uma trilha semelhante. Estamos encapsulando
pessoas, instalando guetos, reforçados, diariamente nas redes sociais, na TV
aberta, nos discursos religiosos; estamos preparando desde casa uma nuvem de
zumbis que, sabe lá, em que ponto chegaremos.
As atitudes de cerceamento em torno da literatura existem
desde que inventamos a escrita. Pelas mesmas razões ditas pornográficas O amante de
Lady Chatterley, por exemplo, passou, várias vezes por maus bocados na justiça. Não foi por pornografia, mas em 1992, José Saramago teve seu O evangelho segundo Jesus Cristo censurado e levado a discussão no parlamento português; Salman Rushdie, em 1989, foi condenado à morte e livrando-se (em parte) desta, teve de viver escondido muitos anos por causa de seus Versos satânicos; Madame Bovary, de Flaubert também foi a júri e os exemplos se multiplicam ao infinito. Portanto, é natural que esse choque entre a literatura e justiça ocorra: os que estão no poder, por um erro de educação
ou talvez seja mesmo pela incapacidade de não ler o mundo senão pelas linhas
bitoladas de uma lei rescaldada de não sei quantos anos, nunca terão capacidade
suficiente para ver o mundo da maneira rica e provocante que arte vê.
Creio somente que as coisas estão do jeito que estão, desarranjadas,
porque boa parte dos pais esqueceu, em nome de querer que seus filhos não vissem
a crueldade do mundo fora de suas casas, têm dado proteção excessiva em alguns
casos e liberdade também excessiva em outros. O próprio gesto atabalhoado do
juiz é prova definitiva disso: é capaz, do ponto de vista da instrução de
ocupar o cargo que ocupa, mas do ponto de vista da melhor maneira de agir não
sabe dar um passo elegante, um passo que se aprume fora de seu gabinete.
Não sou favorável ao que as livrarias fazem: dispor de
guetos para um tipo de literatura. No caso da literatura de cunho erótico a fabricação
de espaços ‘adequados’ para exposição dos livros até mais chama atenção dos
leitores que se fosse colocada entre os livros ‘normais’; quem tem de ter
capacidade para acompanhar os filhos no que leem ou deixam de ler são os pais. Vou
cortar o raciocínio por um parêntese só porque me vem agora um caso passado
comigo no Facebook: certo dia, dispus uma silhueta de nu gay entre homens
acompanhada da citação que é epígrafe deste texto; entre os comentaristas da
foto, um homem intervém, ‘você diz isso porque não tem um filho de sete anos
que tem acesso às redes sociais.’ Li isso calado, eliminei o cidadão e escrevi
justamente algo que muito próximo desse raciocínio que comecei a desenhar antes
desse parêntesis que agora se fecha, ‘ao meu ver uma criança de sete anos devia
está brincando, lendo um livro, estudando, não em Facebook...’ Agora, veja bem,
se os pais, equiparados a um desse do caso virtual, não têm capacidade de
distinguir o que é ideal aos olhos do filho ou que não conseguem lidar com as situações
e as perguntas complicadas porque preferem dizê-los que vimos da cegonha
enquanto o filho se encanta com o vaivém de língua e de corpos num movimento de
sexo quase explícitos em novelas na TV, o problema é mesmo o de querer que as
literaturas ‘pesadas’ sejam ensacadas e postas no canto escuro da livraria?
Pornográfico e vergonhoso é sim, olhar para um lugar onde
vive este juiz, e ver a droga tomar conta dos jovens, ver pais no mundo do
crime se valerem dos seus filhos para usurpar dinheiro de esmolas, ver
mulheres, negros, idosos e gays serem extorquidos, espancados, mortos pela
intolerância, ver crianças e jovens na rua porque o município não consegue ter
vergonha de ao menos oferecer educação aos menores e a justiça fazer uso devido
do próprio ECA para que a prefeitura cumpra com o dever básico. Isso, sim, é
vergonha. Sei da atitude muitas atitudes bem intencionadas de vários juízes nesse
país; até cito uma em que o projeto é ressocializar presos pela literatura,
outra em que crê na ressocialização pelo
trabalho, outra ainda que trabalha atuante acompanhando os lances de escravidão
de trabalhadores e crianças, enfim, os bons exemplos existem às pencas, mas
sempre haverá um fulano que resolve aparecer pela via da petulância e da ignorância,
sempre.
***
Já que eu citei em meados do texto, vou deixar a seguir um recorte do texto da sustentação oral contra Madame Bovary, de Flaubert. Quando da publicação do romance, Flaubert foi levado aos tribunais por acusação de atentado a moral francesa (não foi o caso acontecido por aqui, mas a situação pode ser incluída no rol das perseguições à literatura). O autor de Madame Bovary foi absolvido pela Corte.
Comentários