Livro das mil e uma noites
Assim como as histórias recolhidas pelos irmãos Grimm, por
exemplo, se tornaram muito bem conhecidas entre leitores e não leitores de
sua obra, integrando e compondo uma extensa rede de memória e se mostrando um
rico imaginário para outras produções literárias, também estes textos se
tornaram igualmente tão nossos que só podemos recepcionar com grande louvor a iniciativa
da Globo Livros em nos proporcionar um contato com o texto original. Digo isso porque pouco conhecemos da história completa (e a própria história completa tem muitos vieses) e o que até conhecíamos são traduções aperfeiçoadas a partir de outras traduções e versões 'amenizadas' para o público infanto-juvenil. Falo,
evidentemente da empreitada de reunir em quatro volumes o Livro das mil e uma
noites, que tem pela primeira vez o lance de ser traduzido direto do árabe.
A história que todos já sabemos, mas não custará repetir,
tem seu ponto de partida com a chegada do que seria mais uma mulher a ser morta
por sultão que, no alto de seu poder e de masculinidade, via-se na obrigação fazer
do sexo oposto produto de descarte. Sherazade ou Xerazade como costumamos
chamar durante muitos séculos, mas a verdadeira grafia é Šahrāzād, como bem
demonstrou Mamede Mustafa Jarouche, o tradutor dos quatro volumes ora
publicados, entra para o imaginário como a mulher que pela astúcia da palavra
prolongou sua vida até a tomada de outro rumo que não o da morte como suas
companheiras. É bem verdade que muito da originalidade terá sido acachapada
pelas releituras feitas dos textos, assim como têm sofrido as histórias dos
Grimm. A tradução direta do árabe tem, entre outras funções, recuperar o devido
lugar que o livro merece ter.
O conjunto da obra editada assim se apresenta: no primeiro
volume estão as 170 primeiras noites mais uma rica introdução do tradutor em
que ele conta a história das supostas fontes em persa e sânscrito que teriam
sido a base para a obra; no segundo volume completa a tradução do que, segundo
convenção da crítica filológica, é chamado de “ramo sírio”. O ramo sírio é
constituído pelos manuscritos que foram copiados, dos séculos XIV ao XVIII, na
região árabe-asiática do Levante – que corresponde atualmente ao Líbano, Síria
e Palestina.
No terceiro volume, segundo as fontes originais, inicia o
que se chama de “ramo egípcio” das histórias, sua parte mais tardia (além de
variações comparativas apresentadas em anexo). O livro conta, ainda, com outra nota
introdutória e posfácio a cargo de Musafa, com indicações das fontes. E, por
fim, no quarto volume, enriquecido com notas e apêndices que ajudam a
compreender a gênese e os aspectos mais complexos do texto, a versão original
dos textos mais famosos que por aqui aportaram no imaginário popular “Aladim” e “Ali
Babá”.
Todas as edições pelas notas acerca dos aspectos
linguísticos ou que explicam o cotejo entre manuscritos, além de anexos, com
traduções de passagens do livro que possuem mais de uma redação, e que servem
de elementos de comparação para o leitor interessado na história da
constituição do Livro das mil e uma noites alcançam um lugar de “recuperar
todo o sabor do original, livrá-lo de todas as censuras, restituir sua
sabedoria, sua licenciosidade e, principalmente, o seu bom-humor” – para usar as
palavras do escritor Alberto Mussa, comentador dos textos ora publicados.
O trabalho de Mamede Mustafa Jarouche junta-se a outros – de
igual valor e também já editados pela Globo Livros, como Histórias para ler sem
pressa e O leão e o chacal mergulhador. Uma edição necessária para qualquer prateleira particular.
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Ah! Aproveitamos a oportunidade em falar do Livro das mil e uma noites para apresentar o rico trabalho conduzido pelo blog Arabian Nights Books que tenta catalogar toda a produção artística - no que se refere às artes plásticas - com amostras de desenhos e ilustrações produzidos por alguns dos principais nomes tais como Gustave Doré, por exemplo. Para acessar basta ir aqui [em inglês].
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