João Cabral de Melo Neto - Dizeres




Ontem, 9 de janeiro, foi data de aniversário de João Cabral de Melo Neto, que nasceu no Recife em 1920 e morreu no Rio de Janeiro em outubro de 1999. Já havíamos preparado o texto para uma postagem pela ocasião, quando ficamos a par da raridade de um áudio de Oscar Wilde; não deu em outra, apesar de, por várias ocasiões este blog fazer até três publicações num mesmo dia, não quisemos duas postagens ontem, dada a importância das duas novidades. Como a postagem com a raridade pareceu-nos mais que tudo, já que do próprio João Cabral já tivemos oportunidade de editar um especial em sua homenagem, achamos que as coisas poderiam sair um tanto quanto atrasadas. O texto em questão é um fragmento de um texto maior produzido por ocasião de uma conferência ministrada por Pedro Fernandes, editor deste blog; trata-se de um texto ainda em preparação e o que se lê a seguir são notas esparsas.

***

Três características costumam ser atreladas à obra de João Cabral de Melo Neto, poeta pernambucano nascido em 1920: a secura, a dobra da palavra e o lirismo contido, esta como um desdobramento daquela primeira. Isso porque o elemento que corta toda sua produção poética não é outro senão a pedra; a pedra em seu estágio pétreo. Citemos dois marcos, Pedra sono (1942), livro de estreia, e A educação pela pedra (1966), como exemplos, em que o substantivo apresenta-se já prenhe de sentidos aos olhos do leitor ainda no título da obra. A pedra é o elemento na construção arquitetônica de João, uma construção devidamente medida, esquadrinhada, na sua secura, também na sua superfície de dobras, no seu estado condensado. A pedra é a palavra, também seca, dobrada, condensada, um instrumento de corte, a peça ajustada de uma máquina chamada linguagem.

Tomando de sua frase “Nenhum nordestino é indiferente ao meio em que vive, em que se criou”, entendemos, senão o motivo, mas a possibilidade dele, enquanto tal ser dono de uma poesia que se apresenta nesse estágio bruto, de lapidação mineral, bem como certos “gênios” que povoaram a vida do poeta maior (o de sua aversão à música é um deles). É que ninguém mais do que ele foi sertão e o som que lhe agrada ao ouvido é o som do rumorejo das pedras, que é o som do deslizamento das palavras no ventre do poema. Se Guimarães Rosa certa vez afirmou que o sertão está em toda parte, em João Cabral, o sertão ocupa territórios de dentro e fora do sujeito; o sertão é uma corporeidade – sisuda, e, transbordante em estágio de poesia. O substantivo que alimenta diretamente o fazer poético é uma pedra intermitente que se forma da aridez geográfica e humana do sertão, tornando-se também a poesia, um corpo-objeto seco, delineado, arquitetado. Isso dá forma a uma poesia cujo primor reside na objetividade – que é a forma de engenhar o ventre poético, um ventre dobrado sobre si, o de engenhar o esqueleto do poema.

É mineral o papel
onde escrever
o verso; o verso
que é possível não fazer.

São minerais
as flores e as plantas,
as frutas, os bichos
quando em estado de palavra.

É mineral
a linha do horizonte,
nossos nomes, essas coisas
feitas de palavras.

De modo que, ler João Cabral de Melo Neto é sentir por através dos poros da palavra uma aragem sem aquela piedade fajuta ou barata de outras vozes poéticas que leram o sertão; é uma poesia como o sertão, cortante – “igual ao de um relógio/ submerso em algum corpo,/ ao de um relógio vivo e também revoltoso” – profundamente cortante – “relógio que tivesse/ o gume de uma faca/ e toda a impiedade/ de lâmina azulada” –, mas um corte que não sangra, porque sangrar seria um consolo, uma saída, e ele não nos oferece saídas ou mesmo nada que amenize a dor do corte, que alivie – “assim como uma faca/ que sem bolso ou bainha/ se transformasse em parte/ de vossa anatomia// qual uma faca íntima/ ou faca de uso interno,/ habitando num corpo/ como o próprio esqueleto// […]// porque nenhum indica/ essa ausência tão ávida/ como a imagem da faca/ que só tivesse lâmina”. É como a seca no sertão: daquela que marca a terra – “nenhum melhor indica/ aquela ausência sôfrega/ que a imagem de uma faca/ reduzido à sua boca// que a imagem de uma faca/ entregue inteiramente/ à fome pelas coisas/ que nas facas se sente”. Dele nada se conhece ou se pode conhecer de verdade sem ter vivido a escassez, o fatalismo, o silêncio prenhe desse rumorejar outro – a lição da pedra, a pedra ordenada, estável e muda capaz de se impor com a força e com a simplicidade, presenças que mais ensinam ao homem que o palavreado sem utilidade, a poluição do excesso de som.

A poesia de João fala das coisas com uma contenção exemplar, áspera e rude, necessariamente rude; é como uma espécie de voz monótona; a matéria é o falar de seu fazer poético, mesmo quando essa presença metapoética se apresenta na própria tinta arquitetada do verso. Trata-se de um poeta que resistiu aos sentimentalismos e nunca precisou de outra linguagem que não aquela que gravita em torno de si própria.

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A seguir preparamos um catálogo com alguns raros poemas do poeta na web. São textos publicados na revista portuguesa Colóquio/ Letras, da Fundação Calouste Gulbenkian seguido de artes do artista plástico Tiago Manuel produzidos a partir da obra de João Cabral para uma edição em homenagem ao poeta também da referida revista.



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