De Vinicius de Moraes para Rubem Braga
Por Pedro Fernandes
Vinicius de Moraes, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos e Chico Buarque |
Um dos amigos que esteve mais próximo de Rubem Braga foi Vinicius de Moraes. Essa proximidade parece marcada por outras forças, além do encontro que estabeleceu a amizade entre os dois. O poeta também fecha seu primeiro
centenário neste ano. Ele nasceu em 19 de outubro de 1913 e o cronista nasceu sete dias antes no mesmo ano. Separados por sete dias e pela geografia: Vinicius é do Rio de Janeiro e Braga, de Cachoeiro do Itapemirim.
O convívio no âmbito das letras foi da honrosa troca de escritos. É Rubem Braga, por exemplo, quem escreveu o texto para a orelha da primeira edição da Antologia
poética de Vinicius publicada em 1954, ou a crônica "Recado de primavera". E, sai da pena do poetinha dois textos conhecidos: "Mensagem a Rubem Braga" e "Soneto no sessentenário de Rubem Braga".
Pela ocasião das celebrações dos
100 anos de Rubem Braga, selecionei estas e mais outra ocasiões em que Vinicius se rendeu,
em sua obra, em homenagens ao autor de Espírito Santo: ao soneto escrito por ocasião dos 60
anos do amigo e ao poema encontrado num postal de Rubem Braga, da Itália, acrescento a crônica "O conde e passarinho".
Acompanham esses textos, algumas fotografias capturadas na web, como a que abre esta postagem. São imagens em que os dois aparecem juntos em
diferentes momentos e convívios de suas vidas.
Soneto no
Sessentenário de Rubem Braga
Itaguá
Sessenta anos não são
sessenta dias
Nem sessenta minutos, nem segundos...
Não são frações de tempo, são fecundos
Zodíacos, em penas e alegrias.
São sessenta cometas oriundos
Da infinita galáxia, nas sombrias
Paragens onde Deus resgata mundos
Desse caos sideral de estrelas-guias.
São sessenta caminhos resumidos
Num só; sessenta saltos que se tenta
Na direção de sóis desconhecidos
Em que a busca a si mesma se contenta
Sem saber que só encontra tempos idos...
Não são seis, nem seiscentos: são sessenta!
Rubem Braga e Vinicius de Moraes (sentados). Paulo Mendes Campos e Sérgio Porto (em pé). José Carlos Oliveira (entre os sentados) e Fernando Sabino (apoiado à direita de Vinicius) |
Mensagem a Rubem
Braga
Os doces montes cônicos de feno
(Decassílabo solto num postal de Rubem Braga, da Itália.)
A meu amigo Rubem Braga
Digam que vou, que vamos bem: só não tenho é coragem de escrever
Mas digam-lhe. Digam-lhe que é Natal, que os sinos
Estão batendo, e estamos no Cavalão: o Menino vai nascer
Entre as lágrimas do tempo. Digam-lhe que os tempos estão duros
Falta água, falta carne, falta às vezes o ar: há uma angústia
Mas fora isso vai-se vivendo. Digam-lhe que é verão no Rio
E apesar de hoje estar chovendo, amanhã certamente o céu se abrirá de azul
Sobre as meninas de maiô. Digam-lhe que Cachoeiro continua no mapa
E há meninas de maiô, altas e baixas, louras e morochas
E mesmo negras, muito engraçadinhas. Digam-lhe, entretanto
Que a falta de dignidade é considerável, e as perspectivas pobres
Mas sempre há algumas, poucas. Tirante isso, vai tudo bem
No Vermelhinho. Digam-lhe que a menina da Caixa
Continua impassível, mas Caloca acha que ela está melhorando
Digam-lhe que o Ceschiatti continua tomando chope, e eu também Malgrado uma
avitaminose B e o fígado ligeiramente inchado.
Digam-lhe que o tédio às vezes é mortal; respira-se com a mais extrema
Dificuldade; bate-se, e ninguém responde. Sem embargo
Digam-lhe que as mulheres continuam passando no alto de seus saltos, e a moda
das saias curtas
E das mangas japonesas dão-lhes um novo interesse: ficam muito provocantes.
O diabo é de manhã, quando se sai para o trabalho, dá uma tristeza, a rotina:
para a tarde melhora.
Oh, digam a ele, digam a ele, a meu amigo Rubem Braga
Correspondente de guerra, 250 FEB, atualmente em algum lugar da Itália
Que ainda há auroras apesar de tudo, e o esporro das cigarras
Na claridade matinal. Digam-lhe que o mar no Leblon
Porquanto se encontre eventualmente cocô boiando, devido aos despejos
Continua a lavar todos os males. Digam-lhe, aliás
Que há cocô boiando por aí tudo, mas que em não havendo marola
A gente se agüenta. Digam-lhe que escrevi uma carta terna
Contra os escritores mineiros: ele ia gostar. Digam-lhe
Que outro dia vi Elza-Simpatia-é-quase-Amor. Foi para os Estados Unidos
E riu muito de eu lhe dizer que ela ia fazer falta à paisagem carioca
Seu riso me deu vontade de beber: a tarde
Ficou tensa e luminosa. Digam-lhe que outro dia, na Rua Larga
Vi um menino em coma de fome (coma de fome soa esquisito, parece
Que havendo coma não devia haver fome: mas havia).
Mas em compensação estive depois com o Aníbal
Que embora não dê para alimentar ninguém, é um amigo. Digam-lhe que o Carlos
Drummond tem escrito ótimos poemas, mas eu larguei o Suplemento. Digam-lhe que
está com cara de que vai haver muita miséria-de-fim-de-ano
Há, de um modo geral, uma acentuada tendência para se beber e uma ânsia
Nas pessoas de se estrafegarem. Digam-lhe que o Compadre está na insulina
Mas que a Comadre está linda. Digam-lhe que de quando em vez o Miranda passa
E ri com ar de astúcia. Digam-lhe, oh, não se esqueçam de dizer
A meu amigo Rubem Braga, que comi camarões no Antero
Ovas na Cabaça e vatapá na Furna, e que tomei plenty coquinho
Digam-lhe também que o Werneck prossegue enamorado, está no tempo
De caju e abacaxi, e nas ruas
Já se perfumam os jasmineiros. Digam-lhe que têm havido
Poucos crimes passionais em proporção ao grande número de paixões
À solta. Digam-lhe especialmente
Do azul da tarde carioca, recortado
Entre o Ministério da Educação e a ABI. Não creio que haja igual
Mesmo em Capri. Digam-lhe porém que muito o invejamos
Tati e eu, e as saudades são grandes, e eu seria muito feliz
De poder estar um pouco a seu lado, fardado de segundo-sargento. Oh
Digam a meu amigo Rubem Braga
Que às vezes me sinto calhorda mas reajo, tenho tido meus maus momentos
Mas reajo. Digam-lhe que continuo aquele modesto lutador
Porém batata. Que estou perfeitamente esclarecido
E é bem capaz de nos revermos na Europa. Digam-lhe, discretamente,
Que isso seria uma alegria boa demais: que se ele
Não mandar buscar Zorinha e Roberto antes, que certamente
Os levaremos conosco, que quero muito
Vê-lo em Paris, em Roma, em Bucareste. Digam, oh digam
A meu amigo Rubem Braga que é pena estar chovendo aqui
Neste dia tão cheio de memórias. Mas
Que beberemos à sua saúde, e ele há de estar entre nós
O bravo Capitão Braga, seguramente o maior cronista do Brasil
Grave em seu gorro de campanha, suas sobrancelhas e seu bigode circunflexos
Terno em seus olhos de pescador de fundo
Feroz em seu focinho de lobo solitário
Delicado em suas mãos e no seu modo de falar ao telefone
E brindaremos à sua figura, à sua poesia única, à sua revolta, e ao seu
cavalheirismo
Para que lá, entre as velhas paredes renascentes e os doces montes cônicos
de feno
Lá onde a cobra está fumando o seu moderado cigarro brasileiro
Ele seja feliz também, e forte, e se lembre com saudades
Do Rio, de nós todos e ai! de mim.
Rubem Braga e Vinicius de Moraes |
O conde e o
passarinho
Rubem Braga é, sabidamente, um conhecedor de passarinhos.
Suas crônicas alegram-se e se entristecem com freqüência de nomes de pássaros
nacionais que eu só conheço de ouvir dizer – o que me dá um certo complexo de
inferioridade. Já andei, certa vez, planejando estudar ornitologia por causa
disto, e lembro-me de que na viagem que fiz com ele à sua Cachoeiro do
Itapemirim, quando da homenagem que lhe prestou a cidade, foi com um sentimento
de gula que recebi o maravilhoso disco de pios artificiais de passarinhos,
feito pela família Coelho, que disso criou uma pequena indústria local. Tais
projetos nunca foram adiante, como vários outros, entre os quais um de estudar
carpintaria: e este, inclusive, concertado com o próprio Rubem - e que resultou
em arrancarmos, ato contínuo, a porta da garagem da minha antiga casa, sairmos
meia hora depois para matar o calor com uma cerveja gelada, e nunca mais
voltarmos à dita porta, que se quedou jazente por dias a fio, vítima de nossa
impostura.
O Braga conhece bem sua passarada, isso ninguém lhe tira. O
que não impede, porém, que tenha dado um "baixo" ornitológico que
merece registro, segundo me conta minha irmã Lygia, testemunha ocular do mesmo.
Pois o que se deduz da história é que o Braga pode conhecer muito bem
tico-tico, curió, sanhaço, cardeal, tiê-sangue, sabiá, gaturamo, cambaxirra e
até mesmo vira-bosta - mas em matéria de canário trata-se de um otário completo
e acabado.
Dito o quê, passemos à narrativa.
Parece que o Braga vinha um dia assim muito bem pela
Cinelândia, quando topou com um vendedor de passarinho oferecendo a preço de
ocasião um casal de canários dentro de uma gaiola cuja bossinha era ser
dividida por uma separação levadiça em dois compartimentos, um para o macho,
outro para a fêmea. A gracinha era abrir a portinhola do macho, deixá-lo fugir
e depois vê-lo voltar docemente, no pio da fêmea.
O Braguinha, que além de gostar de pássaros não é tolo
(imagina para quanta mulherzinha ele não ia poder fazer aquele truque!),
assistiu com o maior interesse a mais essa demonstração de que, como diz o
samba, o homem sem mulher não vale nada, entregou o dinheiro, meteu a gaiola
debaixo do braço e tocou-se para o Leblon, sequioso de mostrar seu novo brinco
ao aborígene. E deu-lhe a sorte de encontrar minha irmã Lygia, que além de ser
uma esplêndida assistência para demonstrações desse teor, é pessoa mais de se
apiedar que de caçoar da desdita alheia.
O Braga colocou a gaiola em posição, abriu a porta e lá se
foi o canarinho pelo azul afora, em lindas evoluções. A fêmea, como previsto,
abriu o bico e o canário, ao ouvi-la, fez direitinho como mandava o figurino:
voltou e posou junto à porta aberta. Mas o divórcio entrou? Nem o canário. O
bichinho ficou prudentemente à porta, mas entrar dentro mesmo da gaiola que é
bom... ahn-ahn. O Braga animou a ave canora com milhões de piu-pius, fez-lhe
mentalmente enérgicas perorações contra a sua calhordice - tudo isso, conta
minha irmã Lygia, com olhos onde se começava a notar uma certa apreensão. O
canário, nada.
Quem sabe, ponderou minha irmã, um elemento verde qualquer
colocado junto à porta, uma folha de alface, por exemplo, não animaria o
bichinho? Foi trazida a folha de alface e colocada junto à porta. Durante essa
operação o canário levantou vôo, e a canarinha, aproveitando-se da ocupação dos
dois, fez força com o biquinho e acabou por erguer a portinhola da separação;
dali para o Jardim Botânico, não teve nem graça.
Diz minha irmã que o Braga ficou triste, triste. E como a
esperança é a última que morre, antes de ir embora ainda ajeitou a gaiolinha
para uma espera: quem sabe os pilantras não voltariam à noite...
Canário, hein Braguinha?...
Ligações a esta post:
>>> Leia mais sobre Rubem Braga e sua face menos conhecida, a do poeta aqui.
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