As raízes que invadiram a casa, de Vernaide Wanderley

Por Pedro Fernandes




Acontecimentos como Vernaide podem inaugurar na vida do leitor uma de duas estradas: um apego à sua matéria literária ou repulsa. Aqui, quero me distanciar das duas posições, mas o leitor fique livre para julgar como bem entender, o que já representa, dentro dessas duas possibilidades, este texto; antes da escolha, que ele entenda apenas uma coisa: é este um texto que parte de um gesto de admiração pela capacidade da escritora de se distanciar da poesia para se aventurar pela prosa, muito embora além da poesia (Litorgia ou: poemas com rimas vermelhas e Tatuagem), ela já tenha se aventurado pela seara da palavra corrida (o infantil Duas histórias de guia e o conto-poema Rota dos inocentes). Digo isso diante, evidentemente, deste “As raízes que invadiram a casa” (Editora Patuá), um dos romances que figura já entre uma das melhores surpresas literárias deste ano levando em conta as poucas leituras que fiz de produções literárias brasileiras. Surpresas melhores até que textos de autores bem idolatrados por aqui como é o caso do Mia Couto, do qual li, antes do livro de Vernaide, A confissão da leoa, último romance do moçambicano. Se Mia peca pela pressa de não conseguir amadurecer o tema até a gestão do texto e se beneficia de determinados jogos editoriais para enlarguecer uma história que está mais para o conto, quando muito uma novela, Vernaide não. A leitura do seu Raízes me faz crer está diante de um tema amadurecido, limpo, e beneficia-se de uma tentativa de reestruturação narrativa como se pretendesse por em movediço os próprios limites fronteiriços do romance ou trazendo para território desse gênero, como se estivesse diante de um canteiro de obras, que afinal é nisto que contemporaneamente ele vem se transformando, várias possibilidades textuais.

As raízes que invadiram a casa é como um caderno de rabiscos devidamente organizado para produzir no leitor a sensação de uma história só, mas sem que a escritora lhe dê os trajetos devidos; isto é, ela requer a quem ler que erga o edifício narrativo. Assume uma posição muito próxima da do poeta que é tomar as vozes alheias para si, alojá-las numa estrutura um tanto movente, mas que são vozes tão suas quanto do outro. Ao falar de vozes vale ainda ressaltar do burburinho externo que tudo perpassa, que produz uma leitura da curiosidade; estamos, sem saber, sendo levados por uma bisbilhotice muito interiorana do Brasil, principalmente quando damos com o encontro entre Júlia, a personagem principal do romance e uma das narradoras, Anita, que se torna sua confidente não sem a suspeita do leitor de que ela esteja mais para meia irmã não declarada, principalmente pelo zelo exacerbado do pai de Júlia por Anita. Se Aureliano, o pai da Júlia, incorpora da dureza do macho nordestino, seja pelo tratamento dado à esposa e presenciado por Júlia, seja pelos rituais de zelo pela tradição do homem como o centro da família, seja ainda pelos casos externos ao casamento, salta novamente pela via da suspeita, fruto, é bom que se repita, da bisbilhotice do leitor, que Aureliano, e esse parece ser o agravante maior da relação entre Norma, a mãe de Júlia e ele, seja um daqueles gays enrustidos dos muitos que ainda estão espalhados Nordeste afora: os que têm sua família, mas entre os casos extraconjugais mantém o melhor da relação, um lugar onde se libertam da interdição.

Por falar em interdição, este parece mesmo ser o tema movente do romance: a alegria da Júlia criança pela chegada do pai e a sisudez à mesa do jantar, o quarto da mãe como o lugar que nunca deve ser frequentado pela filha e ela assim mesmo infringe roubando-lhe os batons, a proibição das roupas mais sensuais, das saídas para o cinema ou para a rua até altas horas da noite, tudo será responsável pela consolidação da psicologia à frente que Júlia irá desenvolver, principalmente depois de mandada para um internato na cidade grande por causa da descoberta do pai de suas fantasias amorosas para com o vaqueiro da fazenda, muito mais velho que ela, Teodoro Jurema, escritas num caderno-diário, um dos objetos da memória de Júlia.

O retorno de Júlia ao cenário de sua infância e adolescência é também o retorno para resolver esse impasse amoroso. Já mulher feita, amante de Raymundo Diniz, assim com ípsilon, e há justificativa para isso, mas que não vou tocar aqui pela limitação de espaço, o reencontro com Teodoro abre na narrativa um grande choque, que poderíamos demarcar como um dos impasses constituintes do modernismo no Brasil, o choque entre o tradicional e o moderno. O vaqueiro já de idade avançada não é afeito ao universo de Júlia, mas ela, na posição de laçadora, conseguirá talvez o seu maior feitio ao longo da narrativa: pela necessidade de um tratamento de vista para Teodoro, levá-lo para junto de si, aos ritmos da cidade grande, uma redescoberta sexual dela e do vaqueiro. A explosão erótica entre os dois é nascida de um jogo da palavra adormecida nos diários de Júlia, passada ao companheirismo que ela desenvolve ao lado de Teodoro e que vai levando o romance ao seu desfecho. Apesar de toda determinação de Júlia, o seu enovelamento com o vaqueiro, na atual circunstância, é apenas um reflexo do vivido a largo tempo com Raymundo: aqui, ela sua amante é usada por ele como fantoche sexual, lá, ela é quem assim procede. Não creio haver amor, no sentido do sublime, nesse jogo. Tudo é tão conduzido pelo instinto. Tão controlado pelos impulsos de Júlia. E pode ainda ser que seja tudo um mero lapso de memória, por que não é isso este romance? Raízes é resultado de um rumorejo feito idas e vindas, de frangalhos de lembrança, que pede ao leitor um constante retorno ao que vai sendo dito pelos narradores. E é possível que ao retornar não dê mais com nada disso do que falei antes. 


* Texto publicado no Caderno Domingo, do Jornal De Fato, de 16 de dezembro de 2012.

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