As aventuras de Pi, de Ang Lee
Por Pedro Fernandes
1. Com esta produção Ang Lee provou que é mesmo possível um
diretor está sempre se reinventando e cumprindo grandes apostas. Sim, porque qualquer
um que olhar para a cinematografia sua que teve maior repercussão entre os da
crítica comprovará, mesmo sem ter nenhuma aptidão para observar detalhes
técnicos e outras parafernálias de cinema, o que estou dizendo. Antes
deste bem conceituado Life of Pi –
aqui traduzido como As aventuras de Pi
– houve, só para refrescar a memória dos leitores, O tigre e o dragão, filme cuja fotografia é, sem dúvidas, um caso à
parte, e O segredo de Brokeback Mountain,
produção que lhe rendeu o Oscar de Melhor Diretor.
2. Em As aventuras de Pi repete-se o espetáculo imagético e nele está uma das razões que fazem este filme
arrancar boas doses de lágrimas dos olhos dos telespectadores. Não é nenhum
drama no sentido derramado da palavra (ao mesmo tempo em que por trás do
desenvolvimento da trama ele, o drama, está lá, mas não é coisa que atravesse
todo o filme); é, sim, uma história de superação. E talvez esteja aí a nascente
das lágrimas e não será um choro barato. Ao que eu saiba, todo mundo, em algum momento da sua vida, já terá passado por instantes arrebatadores como o vivenciado pela personagem a fim de superar alguma coisa. Pi, antes de tudo, é um curioso sobre
o mundo. Criado num país que se equilibra entre o sectarismo do Ocidente com
sua razão marcada pelos encantos soprados com o vento da modernidade e a
pluralidade cultural marcada pelos cortejos ritualizantes de uma fé sem limites
num número extenso de divindades, o menino desde cedo tem de provar sua capacidade
de existir nesse universo sem perder-se do interesse, por exemplo, de se livrar
da perseguição entre os colegas de escola que lhe caçoam pelo nome – Pi é a
abreviatura de Piscine, nome com o qual foi batizado em homenagem ao complexo
de piscinas localizado em Paris, Piscine Molitor. Quando adolescente, já depois
de experimentar várias possibilidades de entender o fenômeno da divindade e
encontrar-se com que quem talvez fosse sua futura mulher, a família, dona de um
zoológico, decide vir para o Canadá. Embarcados num cargueiro que está mais
para arca de Noé, uma vez que todos os animais do zoológico também vão junto
com a mudança, ocorre um acidente com o navio e, daqui até o desfecho do filme,
será a luta pela sobrevivência do adolescente e um tigre, Richard Parker, isso
depois de ter seu fim uma zebra, um orangotango e uma hiena.
3. Apesar de lido como um filme sobre a busca, não consigo
ver busca alguma. Apenas um embate de naturezas pela sobrevivência; entre o homem dono da razão e
o animal, o lado selvagem. O conflito entre os dois lugares vai pelo caminho de
que não há sequer uma linha tênue entre esses dois lugares: por vezes, a razão ultrapassa
seus limites ao ponto da selvageria – um bom exemplo é quando Pi, num sinal de
protesto ao tigre, decide marcar seu território tal qual os felinos, urinando –
e outras vezes a selvageria pode parecer a razão, como quando o tigre encanta-se com o
brilho das águas-vivas no escuro da noite no mar. Nesse embate entre duas
forças, sobrevivem o homem e o animal e este graças ao primeiro, justamente
pela capacidade de usar da razão para entendimento do lado do animal.
4. Ainda neste embate entre o senso da razão e o selvagem,
outro embate: o da fantasia e o da realidade. No fim de tudo, tendo de contar
sua história de sobrevivência aos investigadores japoneses, Pi faz o relato tal
como vemos no decorrer do filme; insatisfeitos, pedem que ele reveja a
história, que dê explicações mais sensatas sobre o ocorrido, ao que adolescente
rediz tudo de outra maneira, substituindo os animais pelas pessoas possíveis da
viagem. A interferência do escritor que ouve todo o relato de Pi adulto, que
esta é a base narrativa do filme, sobre o acontecido, numa tentativa de explicar,
aclarar a história recém inventada é o maior desperdício da narrativa e, do meu
ponto de vista, estraga o movimento sugerido de suspensão da verdade inaugurado
desde a salvação atordoada do garoto quando do acidente do navio. Era preferível que não houvesse esse diálogo; que ficasse para o telespectador a busca por uma resposta se, afinal, as coisas procederam da maneira primeira narrada por Pi ou da maneira segunda.
5. Por fim, não se deve esquecer que o filme tem por base a obra do canadense
Yann Martel. O livro homônimo que já tem tradução no Brasil é o centro de uma
polêmica inaugurada ainda em 2002, quando o escritor recebeu o Booker Prize, um
dos mais importantes prêmios para literaturas de língua inglesa. Na ocasião o jornal
The Guardian publicou uma matéria
classificando Life of Pi como plágio:
o livro teria sido escrito a partir de Max
e os felinos, obra do escritor brasileiro Moacyr Scliar. Yann Martel, à
primeira vista, negou as acusações e depois disse ter lido uma resenha
publicada em seu país sobre o texto de Scliar; o texto de Scliar foi, sim,
traduzido para o inglês, mas segundo o próprio escritor, a resenha apresentada
por Yann Martel nunca existiu. Fato é que, Moacyr Scliar diplomaticamente não quis
levar adiante na época um processo contra o canadense e já não vive para falar
(depois de tantas vezes) sobre, mas a parte lúcida da imprensa literária não esqueceu
o caso e agora com este filme a história volta à tona. A verdade é que inspiração
ou não, o livro de Yann não existiria sem o livro de Scliar e se o livro de
Yann não existisse também o filme de Ang Lee não existiria.
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