A viagem, de Andy Wachowski, Lana Wachowski, Tom Tykwer
Por Pedro Fernandes
Já foi dito por muitos romancistas que seus livros não teriam
vez se fugisse das páginas para as telas. José Saramago foi um dos que ainda em
vida relutou, depois do fiasco alemão para A
jangada de pedra, em deixar que alguém metesse a mão em algum outro livro
seu e o adaptasse para o cinema. Até que o diretor brasileiro Fernando
Meirelles o convenceu do contrário e, em definitivo, conseguiu arrancar
lágrimas do Prêmio Nobel de Literatura, quando viu, pela primeira vez, o
produto de Ensaio sobre a cegueira
transmutado em Blindness. Depois disso,
já se adapta, ainda para fins deste 2013, O
homem duplicado e o diretor português Miguel Gonçalves Mendes já sinalizou
querer filmar O evangelho segundo Jesus
Cristo. No caso de Saramago, era sim receio. Apesar de não ser nenhum
diretor de cinema, mas acho seus livros plenamente imagéticos; até essa forma
de organização de diálogo no romance e a relação entre as vozes de narrador e
personagem já têm um pique cinematográfico. O caso complexo é fazer valer o
plano da alegoria para as telas, mas se isso não ocorre, como não ocorreu em Blindness, para quê existe o romance, não
é mesmo? Além do mais, por mais fiel que seja, são, disso pouca gente tem
dúvidas, obras distintas.
Mas, alguns diretores querem mesmo dá cara à tapa. Afinal,
para que mesmo servem, senão para lidar com experimentos de linguagem? Já outros
filmaram coisas mais difíceis, como o romance do Don DeLillo que comentamos há
pouco por aqui, o Cosmópolis. Ou adaptar
Ulisses, de James Joyce – não tanto
pelo enredo, mas pelo trâmite psicológico do romance... Enfim, mas foram
filmados. Os dois exemplos mostrados são extremistas porque um deu supercerto, já
o outro... Agora, com a chegada de A
viagem, versão para Cloud Atlas,
filme homônimo do livro do britânico David Mitchell, o debate em torno do que
possível ser filmado ou não volta ao centro das conversas. Isso porque, mesmo
depois da empreitada dos irmãos Wachowski, há ainda quem diga que o livro de
Mitchell é impossível de ser levado às telas. Talvez pela experiência com a
trilogia Matrix que revolucionou o
jeito contemporâneo de fazer filmes, novamente, os Wachowski acharam poder
desafiar a sétima arte e, sim, para eles, Cloud
Atlas é filmável. Para eles e para Tom Tykwer, diretor de títulos bem
conceituados como Corra, Lola, corra.
Cá desconheço o livro do escritor britânico, mas pelo que li
sobre, a complexidade do enredo no filme é superior ao que está no papel; isto
porque, ao invés de as seis histórias aí apresentadas serem narradas em simultâneo
elas são narradas em separado como se contos independentes. Também as histórias
em Cloud Atlas livro são narradas de
forma cronológica e descendente, isto é, do futuro para o passado, totalizando,
no final, ao invés de uma linearidade, algo como um círculo, enquanto em Cloud Atlas filme as histórias se passam
em simultâneo e o efeito de circularidade é preservado. Observando, no filme, estamos
diante do fim de uma civilização e o princípio de outra, sendo que a do futuro,
volta ao passado de si própria para evitar o seu fim. Pelos recursos da imagem
e a estratégia adotada pelos cineastas é óbvio que a leitura do filme é mais
simples e dada ao alcance até dos mais incultos. As tramas são bem encaixadas e
o telespectador logo consegue fazer as ligações de quem é quem nas seis situações
desenvolvidas, trabalho mental que na leitura deve ser buscado fazer pelo
leitor. E talvez não deva exigir tanto do leitor pela independência das
histórias; efeito complexo, sim, é o conseguido por romancistas como Lobo
Antunes que interpõe às vezes num mesmo parágrafo três situações distintas e ai
de você se não consegue acompanhá-lo.
A viagem não chega
nem a causar confusão nos telespectadores e talvez, por isso, que eu afirme com
tanta convicção de que o livro do Mitchell não exija lá essas coisas quem o lê.
Ganha melhor desenvolvimento na trama cinematográfica a história ambientada nos
anos 1970, nos Estados Unidos, na época dos grandes projetos nucleares – e é
este o tema central dessa narrativa – e a ambientada no século XXII – em que os
humanos repetem o mesmo gesto cíclico da escravidão de uma minoria sobre uma
maioria, efeito muito próximo do praticado no período escravocrata de braços sobre
negros, outro ponto de uma terceira história aí narrada. As outras três histórias
são: a da luta pela sobrevivência num ambiente de hostilidade de início de
civilização, a história presente, narrada e vivida pelo próprio narrador que está
dando forma à trama completa e a história ambientada nos anos de 1900, em que estão
em cena um amor gay entre dois rapazes numa época em que as relações entre os
do mesmo sexo eram qualificadas como crime.
Antes de todo esse papo de reencarnação que andei lendo em
alguns materiais na web creio que A viagem seja um filme que nada tenha
disso, não no sentido que as pessoas têm atribuído. Existe um elo que une os
momentos tratados e as pessoas neles envolvidas, mas que não se firma por um
ato espiritual ou carnal. É um elo histórico. As pessoas de cada período da
história da humanidade estão interligadas pelos mesmas razões: notem que o que
mais buscam todos é a liberdade – isso é o elemento comum que ao longo da existência
temos encarnados em nós. Também o filme é o entendimento de que a história da
humanidade tem um pouco de circularidade, embora seja isto uma ilusão. Cada história,
apesar de ligada uma a outra tem sua própria razão de ser e os fatos apesar de
próximos são diferentes e únicos. Fato é que o homem está numa redoma onde
parece repetir incessantemente, até mesmo numa geração fora do planeta os mesmos
erros de sempre, o de querer imprimir sobre outro a visão unicista da realidade
– quem diz isso, senão o Avatar, de
James Cameron? Vejo, o filme como uma distopia. Os que lutam por reverter o
quadro de opressão em que vivem atravessam as gerações através dos seus gestos,
sobretudo dos gestos da arte, a única que parece invicta nesse lance todo
(note, a música, a literatura, a escultura etc. são uma constante em várias
etapas das histórias narradas). Ainda que pareçam tais gestos uma inutilidade terão
servido para acrescentar um pequeno rabisco na história das possibilidades,
aquela que, no fim, une as duas pontas o limite e princípio da civilização.
Comentários