Cinco notas sobre Fado alexandrino, de António Lobo Antunes
Por Pedro Fernandes
Uma coisa é certa: essas notas aqui dispostas sobre este
romance de António Lobo Antunes são falhas. Elas não conseguirão dizer, no
total, o que é este livro; elas não conseguirão fazer entendê-lo. A razão disso
é simples, há que lê-lo para ter essa totalidade; há que relê-lo para se fazer
entender. E as notas são recolhas para uma primeira impressão sobre o romance.
1. Este é na linha horizontal da obra do escritor português
o seu quinto romance; vem depois da trilogia Memória de elefante, Os cusde Judas e Conhecimento do inferno
e de A explicação dos pássaros. Se sobre
o último romance arrisquei-me dizer que estava diante de novo lugar temático na
literatura de Lobo Antunes, reafirmo esta visão, agora ainda mais acesa, diante
do quinto romance. Estamos aqui situados no tempo imperfeito – não no sentido do modo verbal e sim na já característica
superposição dos tempos que nos romances antunianos compõe uma amálgama de
acontecimentos reinventando um estágio temporal outro, alheio ao tempo comum e
muito próximo do movimento de rememoração. Sabe-se apenas que estamos numa situação:
um grupo de amigos retornados há pouco mais de dez anos da África sentam-se num
jantar e vão, cada um à sua maneira, segurado pelo braço da memória dá contas de
como foi esse retorno e o que se sucedeu a eles no correr da última década. Fora
o retorno do continente africano outro fato histórico que tem servido de lugar
comum à literatura portuguesa de depois da década de 1970, a Revolução dos
Cravos, ponto culminante da derrocada do Estado Novo.
2. As cinco personagens são representativas dos dois
principais momentos da história portuguesa – são todas militares: um
tentente-coronel, um alferes, um comandante, um soldado e um tenente, este que
pouco aparece na narrativa e está mais como um sujeito ouvinte. Todas as personagens estão em declínio, não apenas
porque o tempo do militarismo está em falta, mas porque o destino pelo qual
lutaram parece não tê-los convencidos tampouco lhes dado razões para o
triunfalismo prometido. É, pois, um encontro de desilusões, de reflexões sobre
um fim e uma glória perdida num lugar empoeirado qualquer da memória.
3. Dividido em três partes – “Antes da Revolução”, “A
Revolução” e “Depois da Revolução” – o livro é uma multiperspectiva sobre os
mesmos acontecimentos. Muito embora seja esta uma leitura do próprio Lobo
Antunes, o leitor, alheio a esta informação só tomará consciência exata desse
movimento da narrativa na segunda parte, na qual os acontecimentos são descritos
em sua grande parte na terceira pessoa e com poucos desvios da linearidade. Na
primeira parte o leitor é confrontado com um intercâmbio de fatos e uma oscilação
entre a primeira e a terceira pessoa que dá uma confusão mental custosa de
resolução: até mesmo para encontrar o lugar das vozes das personagens é coisa
que só conseguirá, parcialmente, já na segunda parte do romance. Num primeiro
momento todos relembram o retorno de África, no segundo o que foi/como foi a
Revolução dos Cravos e no terceiro momento, todos estarão confrontados com um acontecimento
que mudará os seus futuros, no fim do jantar, entre prostitutas, ocorre um assassinato.
4. Aclamado como um dos mais brilhantes livros do escritor, Fado alexandrino merece, sim, o epíteto:
não apenas porque os modos de experimentação do autor são aí utilizados em sua plenitude,
como não deixa de existir o rumorejar reinventivo em torno da linguagem do
romance como vimos notando nos quatro primeiros romances. Tenho comigo que uma
das perguntas mais irresponsáveis a se fazer a um escritor é “qual o seu
processo de criação”, mas como incipiente nos jogos de narrar desenhados por
Lobo Antunes, se me fosse dada a oportunidade, não hesitaria em fazê-la. Sim,
porque é um projeto de engenharia muito bem desenhado: e surpresa maior é que,
do caos narrativo, todos não saem ilesos, mas conseguem no fim, ter um suspiro
sobre os acontecimentos. Digo isto porque mesmo em Proust, em Virginia Woolf,
em Joyce, escritores que são utilizados para aproximar como ilustradores do
arquitetado por Lobo Antunes, apenas se assemelham, pelas breves leituras que já
fiz desses escritores. No fim, o escritor português é qualquer coisa de novo pela
capacidade reinventiva da própria forma narrativa.
5. Fado alexandrino
é o romance de um tempo parado. Todo volteio dado em torno do mesmo ponto, e
sempre pela matéria do caótico – até o desfecho, com o crime e seu ocultamento –
dão notas de que o tempo de fezes (para reproduzir uma expressão do poema de
Carlos Drummond de Andrade) não está no passado, mas prolonga-se num presente
que não consegue se desvencilhar do peso desse tempo nele incrustado. Está implícita
aí uma ausência de alegria, porque toda vez que colocado diante da reflexão acerca
de si e do que está a sua volta as personagens dão sempre com uma paralisia que
as sufoca, corrói-lhes as perspectivas e no fim de tudo não há outro sentimento
sobre o mundo do que a mágoa, o ponto de uma revolta.
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