Décio Pignatari


Décio Pignatari. Foto: Josane Faleiro


Décio Pignatari terá aparecido para muita gente sem nem mesmo que essa gente o tenha conhecido ou lido de ponta a ponta sua obra ou sequer sabido de seus feitos. Pelo menos assim se deu comigo; Décio me apareceu muito antes que eu soubesse quem era Décio. Isso porque, aquele poema “beba coca-cola”, foi reproduzido em tudo quanto foi livro didático, principalmente se do Ensino Médio, quando a questão era falar do movimento concretista.

Escrito em 1956, "beba coca-cola" tornou-se um dos poemas
mais conhecidos do movimento concretista.

Muitos anos depois terei sabido o que é foi o tal movimento: caiu para meu grupo na Faculdade de Letras um seminário sobre. E será da revisão dos slides que preparei por essa ocasião que muitas das informações serão aqui repisadas. O destino, mais tarde, me colocará diante do próprio Décio, com quem fiz um curso por ocasião de uma das edições do Colóquio Barroco, quando o evento sob chancela do professor e poeta Francisco Ivan, ainda era parte integrante de um evento anual que era organizado pelo Centro de Ciência Humanas Letras e Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, a Semana de Humanidades. Isso foi em 2009.

Foi nesse curso que, interpelado sobre o que foi o movimento concretista, ele próprio ‘negou’ a sua existência, chamando de uma brincadeira de três jovens. Evidente que entendi o gesto irônico seu; associar seu nome ao movimento é até correto, mas reduzi-lo é coisa pequena, já que a Poesia Concreta num sentido ortodoxo, de eclosão e afirmação, foi um fenômeno de curta duração e depois daquele fim dos anos 1950, muita coisa terá acontecido com sua obra poética.

Os Noigandres. Da esquerda para a direita: Haroldo de Campos, Décio Pignatari e Augusto de Campos.

Como é sabido, impregnados pelas vanguardas que tiveram papel importante na sustentação do modernismo no Brasil, foram os irmãos Campos, Haroldo e Augusto que juntamente com Décio, o grupo Noigandres, deram pulsão ao que ficou conhecido como Poesia Concreta, fruto de experimentações com as formas e o temas da poesia, ou o limite da dicção linguística, conforme acredita boa parte dos entendedores do que foi o movimento.

O grupo assim designado deu-se pela publicação de uma revista também assim intitulada e que teve cinco edições e numa delas ficou enunciado o que seria o plano-piloto do movimento. Isso foi na 4ª edição, em 1958. Noigandres é importante, portanto, não apenas por isso, mas é a revista foi testemunha da própria 'evolução' do concretismo poético. O próprio poema-símbolo "beba coca-cola" foi publicado pela primeira vez na mesma edição em que o plano-piloto. Também não haveremos de esquecer que Décio e os irmãos Campos formaram uma ala, talvez a mais radical do movimento, ou talvez só a primeira, a precursora, mas o Concretismo se deu ainda pelos trabalhos de Eugen Gomringer, poeta suíço-boliviano radicado na Alemanha nos anos 1950, Ronaldo Azeredo, José Lino Grünewald e, mais tarde, Edgard Braga e Pedro Xisto de Carvalho, entre outros, que tiveram um rápido contato com o experimentalismo poético, como é o caso de Ferreira Gullar.

Devo lembrar que, no referido seminário na graduação em Letras, apresentei antes dos modernistas Oswald de Andrade e João Cabral de Melo, pelo caráter enxuto da sua poesia tidos, logo, como precursores do concretismo, que já em Machado de Assis, no romance Memórias póstumas de Brás Cubas, em duas ocasiões, a primeira no trocadilho “A arma virumque cano” e a segunda no famoso capítulo, “O velho diálogo de Adão e Eva”, como antecessores, muito antes dos modernistas, da elaboração da estética concretista. Não sei onde eu li isso, ou se foi uma constatação propriamente minha no calor da pesquisa para aquela ocasião – é fato que eu estava relendo o livro de Machado de Assis –, mas o próprio Décio iria me confirmar no já referido curso que, sim, o gesto do narrador machadiano é marca precursora, dentre muitas, para sustentação do que foi pensado em fazer com a poesia concreta.

Razão que se justifica, se lido o já referido plano-piloto que diz ser a poesia concreta o produto de uma evolução crítica das formas, que descarta o verso como único elemento constitutivo do poema e considera o espaço gráfico da página; lance que parece ser experimentado no Memórias. O signo linguístico é posto em movimento por ser percebido como uma entidade sonora, semântica e visual, ou como ficou designado, é forma verbivocovisual.

A notícia da morte de Décio, chegada em meados da tarde de ontem, pelo Twitter do poeta André Vallias, que recebeu a notícia do amigo Augusto de Campos, é, sem dúvidas, a de uma grande perda para o cenário da literatura brasileira. Não apenas pelos feitos com a poesia concreta; e se ainda fosse apenas isso já seria motivo de entender como uma grande perda, porque este foi o primeiro movimento internacional que, na sua criação, a participação direta, na sua criação, de poetas brasileiros. Mas, Décio, além de poeta, foi exímio ensaísta, teórico da comunicação, contista, romancista, dramaturgo, publicitário e professor.

Capa da 1ª edição da revista Noigandres.

Nasceu em Jundiaí, São Paulo; filho de imigrantes italianos. Cedo se muda para Osasco, onde mora até os 25 anos. Publicou seus primeiros poemas, ainda em 1949, na então Revista Brasileira de Poesia. Um ano depois lança seu primeiro livro no gênero, Carrossel; livro que terá passado despercebido pela época, uma vez que São Paulo, ainda muito estava vidrada nos poetas da Geração de 1945. O grupo de onde sairia a ideia do Concretismo é fundado, em 1952, quando ainda cursava Direito, curso no qual se formou no ano seguinte, e através da revista que dá nome ao grupo, Noigandres, são publicadas várias antologias; o movimento de poesia concreta é oficializado no periódico e durante a Exposição Nacional de Arte Concreta no Museu de Arte Moderna de São Paulo.

A profissão de advogar nunca foi exercida por Décio. Foi publicitário, mas também fechou a agência de dela se tornar um fenômeno. Trocou tudo pelo magistério, profissão em que parece, ter se realizado, seja pelo talento que tinha para coisa, seja porque foi sendo reconhecido pelo trabalho teórico que desenvolveu, por exemplo, em torno da Semiótica. Além de tudo isso, Décio foi um crítico contundente do seu tempo e um dos mais importantes tradutores em língua portuguesa; muito provavelmente sem ele não teríamos acesso a obras como as de Mallarmé, Ezra Pound, entre outros.



Quanto ao seu trabalho com a poesia, outro lugar onde Pignatari se realizou, devo concordar com as palavras do poeta Ronald Augusto: "seu foco radicava na experimentação de formas poéticas que dessem conta de presentificar, através de uma dialética de saturação-esvaziamento de procedimentos de linguagem [...] um pensamento icônico, espécie de perversão ou de réplica translatícia - intra e entre códigos - ao pensamento verbal sobre o qual a poesia mais tradicional se assentava e que cumpria pôr em questão."

Do gênero, não sei se Pignatari terá deixado algum inédito; nas últimas aparições sempre se queixava de que poesia é "um negócio chato". Mas, em termos de dramaturgia, não tenho dúvidas. O último livro que ele lançou foi o infanto-juvenil Bili com limão verde na mão, pela Cosac Naify, mas quando este em Natal, em 2009, o escritor confessou que estava dando continuidade a produção de uma trilogia para o teatro; o primeiro trabalho da série trata da relação entre Machado de Assis e Carolina e foi publicada sobre o título de Céu de lona. As outras seriam sobre a relação entre Auguste Comte e Nísia Floresta então batizada por Viagem magnética e Sören Kierkegaard e Regine Olsen.

Ligações a esta post:


Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #599

Boletim Letras 360º #609

É a Ales, de Jon Fosse

Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito

Boletim Letras 360º #600