A confissão da leoa, de Mia Couto

Por Pedro Fernandes



Quem tiver lido o conto “O caçador de ausências” fará uma relação imediata com este A confissão da leoa, o mais recente romance de Mia Couto, publicado aqui no Brasil. Um romance, aliás, com fôlego de conto. Essa constatação é útil para dizer que não estamos diante de um grande romance. A matéria textual ou mesmo a trama se reveste de uma simplicidade extrema e os acontecimentos não tem vigor suficiente para servirem a um propósito mais elastecido como é exigido do romance. Quando o máximo que pode alcançar é o estatuto de novela. Temos a sensação que escritor se beneficia de uma série de procedimentos meramente editoriais que serve ao texto como espuma para enchimento da ideia que o sustenta, que é a de caça a leões que no pequeno vilarejo moçambicano de Kulumani têm feito ataques às pessoas, em particular, às mulheres.

O problema de A confissão da leoa, ainda nascido dessa simplicidade extrema, está no próprio formato da narrativa: a história é narrada sob dois pontos de vista, dos escritos de uma adolescente de Kulumani, Mariamar, e dos escritos de um caçador, Arcanjo Baleiro, mas isso é integralmente demarcado ao longo do livro. O romancista faz questão de dizer à introdução de cada texto qual voz ali está. Se repararmos que esse procedimento se assemelha, por exemplo, ao utilizado por Inês Pedrosa em Fazes-me falta, romance de duas vozes – uma feminina, outra masculina – notaremos o quão mais consistente é a estruturação deste romance se compararmos com o do Mia Couto. Ou para fazer uma relação ainda menos provável: António Lobo Antunes versus o escritor de Moçambique.

Outra: apesar de o autor colocar na abertura do romance um texto chamado de “Explicação” que justifica, entre outras coisas, o ponto de partida para a trama, os escritos das personagens narradoras parecem se unir por força do acaso, o que torna o procedimento já muito antigo utilizado pelos escritores a fim de reforçar o pacto de realidade do texto ficcional junto ao leitor, que é esta uma das funções da abertura, parecer não funcionar em A confissão da leoa. A nota fica apenas como um dizer que virou moda no cinema: "Baseado em fatos reais". O mais são os jogos de palavras, os trocadilhos de ideias, as refabricações de sentidos e a extensa galeria de opressões à mulher, modus operandi já há muito conhecido do escritor. Falta o romancista do tão bem feito Terra sonâmbula.   

Voltemos então às semelhanças do ponto vista narrativo entre o romance e o já citado conto de O fio das missangas. Arcanjo Baleiro é um homem da capital, caçador, que até havia visitado, num passado não muito distante, Kulumani, para matar um crocodilo que como os leões de agora, também ameaçava o lugar. O retorno ao vilarejo será o momento de reencontro com determinadas situações deixadas no passado, entre elas, sua reaproximação de Mariamar. O fato é que, para um caçador experiente como Baleiro, lidar com tais situações parece ser o elemento que o levará ao conseguir cumprir a missão destinada; ou mesmo porque a complexidade das relações em Kulumani são tamanhas que, alguém vindo de fora, é incapaz de, primeiro, compreendê-las, segundo, resolvê-las.  

A constante convivência com os ataques de leões deram aos moradores daquele lugar uma capacidade de assimilação aos animais tão forte que não são poucas as vezes que ficamos em dúvida se estamos diante de personagens ‘humanas’ ou se de ‘leões’. Esse efeito, supomos, é o ponto alto da narrativa, muito embora devesse ser algo mais explorado e não caído na rapidez superficial operacionalizada pelo romancista. É também a matéria do conto “O caçador de ausências” em que o personagem narrador, depois de não conseguir saldar uma antiga dívida sai mato adentro à procura não se sabe de quê, se de uma tranquilidade para acalmar-lhe os nervos de vítima de um caloteiro ou se inconscientemente à caça de Florinha, mulher do devedor há muito desaparecida. Se aqui, o desfecho, o reencontro da personagem com a leopardo, sinaliza para a ausência que tanto lhe afligia, o amor de Florinha, também em A confissão da leoa, o que parece buscar o caçador, mesmo sem saber, não são os leões, mas o amor de Mariamar. No romance, mais que isso: Baleiro figura como espécie de anjo protetor que salvará a jovem do fatídico destino a que está condenada. Figura, aliás, impressa no próprio nome – Arcanjo – e a situação para a qual ele é designado coincide com a série de acontecimentos que vão reduzindo Mariamar ao reduto da casa e da aldeia, seja a exploração sexual por parte do pai, seja a indiferença da mãe pela morte da filha mais amada, Silência...

Mas ao falar em busca, chegamos ao tema principal do romance: A confissão da leoa é um romance de buscas. Tanto Mariamar, quanto Baleiro, que se dedicam a escrita dos acontecimentos passados com eles na situação de Kulumani, escrevem como parte de um processo de busca por liberdade; a mulher, do gesto opressor patente no espaço onde vive, e o caçador, do gesto imposto pela responsabilidade familiar de levar adiante a tradição impressa na profissão. A certa altura do romance, um dos dois, utilizam a expressão de que a escrita lhe serve como salvação da loucura, e a loucura no contexto em que se passa a narrativa, é algo mais agravante que a morte, é o esquecimento de si por si próprio.

Isto é, do ponto de vista do tema há muito o que se observar como significativo, no mais, do ponto de vista estrutural, A confissão da leoa, ficaria bem se a ele fosse designado como uma coletânea de contos ou feita uma reestruturação a ponto de não subestimar, por exemplo, a capacidade do leitor em precisar os lugares de voz narrativa. 

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