A confissão da leoa, de Mia Couto
Quem tiver lido o conto “O caçador de ausências” fará uma relação
imediata com este A confissão da leoa,
o mais recente romance de Mia Couto, publicado aqui no Brasil. Um romance,
aliás, com fôlego de conto. Essa constatação é útil para dizer que não estamos
diante de um grande romance. A matéria textual ou mesmo a trama se reveste de uma simplicidade
extrema e os acontecimentos não tem vigor suficiente para servirem a um propósito
mais elastecido como é exigido do romance. Quando o máximo que pode alcançar é o
estatuto de novela. Temos a sensação que escritor se beneficia de uma série de
procedimentos meramente editoriais que serve ao texto como espuma para enchimento
da ideia que o sustenta, que é a de caça a leões que no pequeno vilarejo moçambicano de Kulumani
têm feito ataques às pessoas, em particular, às mulheres.
O problema de A confissão
da leoa, ainda nascido dessa simplicidade extrema, está no próprio formato da
narrativa: a história é narrada sob dois pontos de vista, dos escritos de uma
adolescente de Kulumani, Mariamar, e dos escritos de um caçador, Arcanjo
Baleiro, mas isso é integralmente demarcado ao longo do livro. O romancista faz
questão de dizer à introdução de cada texto qual voz ali está. Se repararmos
que esse procedimento se assemelha, por exemplo, ao utilizado por Inês Pedrosa
em Fazes-me falta, romance de duas
vozes – uma feminina, outra masculina – notaremos o quão mais consistente é a estruturação
deste romance se compararmos com o do
Mia Couto. Ou para fazer uma relação ainda menos provável: António Lobo Antunes versus o escritor de Moçambique.
Outra: apesar de o autor colocar na abertura do romance um
texto chamado de “Explicação” que justifica, entre outras coisas, o ponto de
partida para a trama, os escritos das personagens narradoras parecem se unir
por força do acaso, o que torna o procedimento já muito antigo utilizado pelos
escritores a fim de reforçar o pacto de realidade do texto ficcional junto ao
leitor, que é esta uma das funções da abertura, parecer não funcionar em A confissão
da leoa. A nota fica apenas como um dizer que virou moda no cinema: "Baseado em fatos reais". O mais são os jogos de palavras, os trocadilhos de ideias, as refabricações
de sentidos e a extensa galeria de opressões à mulher, modus operandi já há muito conhecido do escritor. Falta o romancista do tão bem feito Terra sonâmbula.
Voltemos então às semelhanças do ponto vista narrativo entre
o romance e o já citado conto de O fio
das missangas. Arcanjo Baleiro é um homem da capital, caçador, que até
havia visitado, num passado não muito distante, Kulumani, para matar um
crocodilo que como os leões de agora, também ameaçava o lugar. O retorno ao
vilarejo será o momento de reencontro com determinadas situações deixadas no
passado, entre elas, sua reaproximação de Mariamar. O fato é que, para um
caçador experiente como Baleiro, lidar com tais situações parece ser o elemento
que o levará ao conseguir cumprir a missão destinada; ou mesmo porque a
complexidade das relações em Kulumani são tamanhas que, alguém vindo de fora, é
incapaz de, primeiro, compreendê-las, segundo, resolvê-las.
A constante convivência com os ataques de leões deram aos
moradores daquele lugar uma capacidade de assimilação aos animais tão forte que
não são poucas as vezes que ficamos em dúvida se estamos diante de personagens ‘humanas’
ou se de ‘leões’. Esse efeito, supomos, é o ponto alto da narrativa, muito
embora devesse ser algo mais explorado e não caído na rapidez superficial operacionalizada
pelo romancista. É também a matéria do conto “O caçador de ausências” em que o
personagem narrador, depois de não conseguir saldar uma antiga dívida sai mato
adentro à procura não se sabe de quê, se de uma tranquilidade para acalmar-lhe
os nervos de vítima de um caloteiro ou se inconscientemente à caça de Florinha,
mulher do devedor há muito desaparecida. Se aqui, o desfecho, o reencontro da
personagem com a leopardo, sinaliza para a ausência que tanto lhe afligia, o
amor de Florinha, também em A confissão
da leoa, o que parece buscar o caçador, mesmo sem saber, não são os leões,
mas o amor de Mariamar. No romance, mais que isso: Baleiro figura como espécie
de anjo protetor que salvará a jovem do fatídico destino a que está condenada. Figura,
aliás, impressa no próprio nome – Arcanjo – e a situação para a qual ele é
designado coincide com a série de acontecimentos que vão reduzindo Mariamar ao
reduto da casa e da aldeia, seja a exploração sexual por parte do pai, seja a indiferença
da mãe pela morte da filha mais amada, Silência...
Mas ao falar em busca, chegamos ao tema principal do
romance: A confissão da leoa é um
romance de buscas. Tanto Mariamar, quanto Baleiro, que se dedicam a escrita dos
acontecimentos passados com eles na situação de Kulumani, escrevem como parte
de um processo de busca por liberdade; a mulher, do gesto opressor patente no
espaço onde vive, e o caçador, do gesto imposto pela responsabilidade familiar
de levar adiante a tradição impressa na profissão. A certa altura do romance,
um dos dois, utilizam a expressão de que a escrita lhe serve como salvação da
loucura, e a loucura no contexto em que se passa a narrativa, é algo mais
agravante que a morte, é o esquecimento de si por si próprio.
Isto é, do ponto de vista do tema há muito o que se observar
como significativo, no mais, do ponto de vista estrutural, A confissão da leoa, ficaria bem se a ele fosse designado como uma coletânea
de contos ou feita uma reestruturação a ponto de não subestimar, por exemplo, a
capacidade do leitor em precisar os lugares de voz narrativa.
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