Pelo Dia do Desassossego, reler este “Memorial”
Pedro Fernandes
Ler o Memorial do
convento, este monumento literário de José Saramago, escritor que chega aos
90 anos hoje, 16 de novembro, é ler a sua própria figura – assim me expressei
hoje a tarde na minha página pessoal.
A afirmativa não é vazia. Enquanto ia fazendo minha
releitura do romance que fecha exatos 30 anos agora em 2012, e um dos mais
célebres do Prêmio Nobel de Literatura (deixem que eu faça este breve parêntesis
para dizer por aqui o que disse numa fala minha noutra ocasião, era uma
comunicação no II Seminário Internacional de Artes e Literatura Barrocas, que
se fosse elencar os principais romances de José Saramago, colocaria este Memorial, O ano da morte de Ricardo Reis, O
evangelho segundo Jesus Cristo e Ensaio
sobre a cegueira como os quatro momentos epifânicos de sua obra) vi notando
pelas frases colhidas, aquelas de maior impacto à sensibilidade leitora,
aqueles em que ficamos algum tempo parados pensando em como isso é possível ser
dito por uma pessoa comum, muito embora ainda tenha comigo que um escritor não
é tão comum assim.
E foram essas frases que recortei durante o largo dia de
hoje. Estão emolduradas em imagens desnecessárias, porque elas sozinha dizem
por mil imagens, mas entendam como um recurso atrativo para atentar a acuidade
visual solapada pelo excesso de informações a descer segundo a segundo na tela
do computador. Vou reproduzi-las abaixo pela necessidade de provar o que disse
e também de trazer de um espaço tão evanescente como são as linhas do tempo nas
redes sociais para uma linha que ainda dura alguns dias à vista dos
transeuntes.
“maneta é Deus, e fez o universo”
“faltando os homens, o mundo pára”
“Porque, enfim, podemos fugir de tudo, não de nós próprios.”
“Todo o homem sabe o que tem, mas não sabe o que isso vale”
“Deveria isto bastar, dizer de alguém como se chama e
esperar o resto da vida para saber quem é, se alguma vez o sabemos, pois ser não
é ter sido, ter sido não é será, mas outro é o costume, quem foram os seus
pais, onde nasceu, que idade tens e com isto se julga ficar saber mais, e às vezes tudo”
“um homem tem de saber, por si próprio quando as mentiras já
nascem absolvidas”
“os sonhos são como as pessoas, acaso parecidos, mas nunca
iguais”
“os homens são anjos nascidos sem asas, é o que há de mais
bonito, nascer sem asas e fazê-las crescer”
“que seria de nós se não sonhássemos”
“um homem deve ser capaz de ganhar seu pão de qualquer
maneira e em qualquer lugar”
“a água é o espelho que passa e está parado, e nós que
estamos parados é que vamos passando”
“Jamais se diga aconteça o que acontecer, porque sempre
podem primeiro acontecer coisas com que não contávamos quando dissemos aconteça
o que acontecer”
“É quando somos velhos que as coisas que estão para vir
começam a acontecer, e uma razão de ser assim é que já somos capazes de
acreditar naquilo de que duvidávamos, e mesmo não podendo acreditar que tenha
sido, acreditamos que será”
“o mundo de cada um, é os olhos que tem”
Estão aí a sua dúvida numa superioridade divina, a crença na
capacidade do homem em fazer um mundo diferente pela mesma razão de tê-lo construído
ao longo de sua existência na terra, sua capacidade de acreditar nos sonhos
como pulsão e sentido para a vida, sua aposta de que é na maturidade onde
parece residir a capacidade do homem em orientar-se e orientar melhor os
outros, enfim, o substancial do que pensou e disse Saramago fora de seus
livros, demarcando que a tênue linha que separa a pessoa que escreve e a pessoa
que intervém sempre foi, na sua obra, ainda mais tênue que o comum. Tenho, por
vezes dito, que isto faz uma grande diferença na sua produção literária.
Saramago soube que a literatura não tem capacidade de mudar o mundo, e por
vezes externou esse pensamento, mas sabe que a literatura deve é espaço para se
revisitar esse mundo, ela é elemento inerente à nossa existência e não pode
nunca esquecer-se disso. Se não tem nenhuma missão para arte capaz de relocar
as coisas como estão porque para isso se carece de outras forças, a arte não
pode está cega ou de costas viradas para o papel de nos desassossegar.
Ligações a este post:
>>> No Tumblr do Letras fizemos uma seleção de capas do romance Memorial do convento em várias versões na língua mãe e nas traduções. Os vários rostos para um livro.
Fontes:
As citações estão na 33ª edição de Memorial do convento publicada no Brasil pela Bertrand Brasil; as fotos de José Saramago foram feitas por Inácio Ludgero numa visita de José Saramago ao Palácio de Mafra, quando o escritor estava produzindo o romance de 1982.
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