Desmundo, de Ana Miranda
Por Pedro Fernandes
Não é este o primeiro romance de Ana Miranda, mas bem
poderia sê-lo. Na catedral de livros já escritos por ela, desde o seu primeiro
bem sucedido Boca do inferno, seguido
de O retrato do rei, Sem pecado, A última quimera, Clarice,
Amrik, Dias & Dias e Yuxin,
seu mais recente, Ana Miranda se faz única em cada um deles. Se alguns
escritores buscam/buscaram a unidade ou estão/estiveram em torno de um gesto
escritural que os defina, para ela, não: cada romance se alimenta de uma
linguagem própria e é um gesto de escrita único. De modo que, afirmar que este Desmundo poderia ser seu primeiro
trabalho não é exagero. Notará isso quem tiver lido ao menos duas obras suas.
Agora, diferentemente de outros autores que se dizem sem um
projeto literário próprio – e estou aqui pensando no José Saramago como exemplo
– Ana Miranda sabe claramente do seu itinerário. Num momento recente com a
escritora, ela própria admitiu isto. Tem um fio que ela pretende percorrer e é
possível que não seja linha reta porque haverá determinadas ideias que passam à
frente e ganham melhor estatura e logo se formam enquanto outras ainda vão
sendo amadurecidas. Ana Miranda escreve vários romances de uma só vez. E recupera
para si o mesmo gesto que um seu conterrâneo terá desempenhado nos primórdios
da literatura brasileira: o cearense José de Alencar trabalhou num projeto
literário muito bem estruturado que queria dar contas de estágio genesíaco do
país. Ana trabalha num projeto que quer dar contas de um arcabouço já bem
estruturado do país.
O que vigora de semelhança entre os seus livros é tão somente
o laço estendido entre ficção e história; dois lugares de verdade, pelo menos
assim compreendido, por qualquer romancista. a ficção é tão verdade quanto a
história no instante em que ambas são produtos de uma invenção. Sendo que a
primeira, pela liberdade expressiva, muitas vezes, adquire muito mais um status de verdade do que a segunda.
É assim, por exemplo, que se forma a narrativa de Desmundo. O romance é escrito a partir
de um achado que está alojado como epígrafe do texto: uma correspondência de
1552 do Padre Manuel da Nóbrega ao rei de Portugal pedindo-lhe o envio de
mulheres brancas, prendadas e cristãs da corte para formar famílias no Brasil e
barrar a corrupção desenfreada de brancos para com as indígenas. Em Lisboa, na
época, a rainha cuidava de um grupo de meninas órfãs que eram educadas para serviçais
na corte e, então, mediante o pedido do padre, resposta-lhe, em 1554, com o
envio de sete delas. Estes dois elementos documentados são suficientes para a romancista
imaginar como foi o percurso dessas meninas de Portugal à colônia.
Entre elas, destaca-se Oribela, que é designada para ser
mulher do senhor de engenho Francisco de Albuquerque. Aqui, ganha destaque o
rico trabalho linguístico de Ana Miranda patente em todos os seus romances. É a
própria personagem principal que conta seu percurso, numa narrativa que se
deixa entrecortar, vez por outra, por uma voz em terceira pessoa, que cuida de
enunciar os vazios que a primeira voz não alcança. E, para isso, o texto é
escrito numa linguagem arcaica, não na ortografia, mas na sintaxe e no uso
vocabular.
O livro segue dividido em dez partes com curtos capítulos cada
e que funcionam como pontos de uma trajetória – que inclui desde o primeiro
contato de Oribela com a terra estrangeira, ao conhecimento pela via imposta da
relação marital, a tentativa de fuga e o retorno aos auspícios do casamento
como cria enclausurada, ao nascimento do filho e o abandono de Francisco de
Albuquerque.
A personagem encarna todos os meandros da mais bem acabada heroína
que se tem notícia na literatura brasileira. Heroína trágica. Oribela tem
curiosidade sobre o mundo e nada mais natural quando se vê nele uma estrangeira;
ela é o pleno contraste entre a rudez do macho dominador e da barbárie e a
força delicada da fêmea, não se reduzindo, entretanto, ao papel de rebaixada ou
submissa. Em nome de sua necessidade de experimentar o mundo e com isso de
experimentar-se ela é aquela capaz de buscar romper todas as limitações impostas.
É insuficiente para ela aceitar as coisas como elas são; mesmo não sendo uma
idealista porque suas ações são mais impulsivas que detalhadamente planejadas,
o que Oribela quer saber é o sentido daquilo que lhe disseram ser o fim da vida
órfã: o que é o amor entre homem e mulher, o que é o fim do estar só no mundo,
dois instantes suplantados quando conhece o mercador mouro com quem se envolve
na sua segunda tentativa de fuga ao claustro em que vivia.
Oribela encarna a dupla base do que foi o processo de
colonização do Brasil: é a que vem para a colônia pelo desconhecido, mas com a crença
de que há de ser diferente do modus
vivendi português, que aqui terá uma liberdade que no país de origem nunca
teve; entretanto, é a que não consegue fixar-se a uma terra que toda ela
inóspita, nos modos, nos gestos, nos códigos de conduta. Impossibilitada do
retorno e por não se deixar reduzir por esse modelo tem um ímpeto de luta.
Voltando ao gesto narrativo de recuperar um português
arcaico para dar contas de uma representação, este não é nada que venha prejudicar
a compreensão ou o andamento da leitura por parte do leitor; do contrário, o
romance absorve tão bem a oralidade do seu tempo que consegue fluir muito bem.
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