A culpa como tema na literatura
Por Pedro Fernandes |
Cena de Raskolnikov, de Robert Wine, 1993. O filme é uma adaptação de Crime e castigo, clássico da culpa na literatura. |
Haverá, sem dúvidas, muitas obras literárias que deram
enforme artístico à culpa – sentimento em voga já na literatura bíblica, por
exemplo. Longe de querer esgotar o assunto ou mesmo me deter profundamente
sobre o caso, quero, ainda que superficialmente, registrar esse tema como um
dos mais promissores nas artes.
Dois autores, no rol dos que já tive oportunidade de ler
colocaram no seu extremo de obras esse sentimento: José Saramago e Dostoiévski.
Do primeiro, cito o seu O evangelho
segundo Jesus Cristo e, do segundo Crime
e castigo, para não esquecer dois
principais trabalhos que, no âmbito da produção dos dois autores, são obras
principais e, no âmbito universal, são obras clássicas.
NO evangelho, a
culpa é manifestada pela via oposta, ou o lugar contrário do que esperaríamos; não
será Deus, o topo poderoso e cego pela ideia de expansão de seu nome e do seu
império na terra, quem carregará consigo a culpa pelas atitudes individualistas,
mesquinhas e agressivas que tomará no futuro da humanidade a começar por levar
a cruz um inocente. Não. Mas, José, o pai de Jesus, este sim, levará o fardo
sobre ombros pela atitude tão individualista quanto a do Criador em não avisar
para os da sua comunidade dos planos de matança das crianças pelo rei Herodes. Também
o filho, depois de lhe herdar as sandálias, levará consigo o sentimento que só
terá caminho para sua acentuação na medida em que se aproxima da cruz. O humanismo
de Jesus neste romance é capaz de fazer do sentimento da culpa uma linha que
interliga o passado ao futuro, ocupando o lugar de quem leva as dores de toda
existência.
Já em Crime e castigo,
Raskolnikov, decidido que a velha, proprietária do espaço onde mora, não tem
nenhuma ‘serventia’ social, a assassina e, depois se consome pela culpa transmutada
no medo em ser reconhecido como o feitor do ato. Nessa esteira dos crimes, A sangue frio, de Truman Capote também
faz uma incursão pelas sendas da culpa. Lembra-me ainda o Macbeth, de Shakespeare. Embora naquele caso do escritor
estadunidense parece prevalecer certa ‘imposição’ do narrador em levar que o
leitor se decida pela inocência dos culpados, caso, por exemplo, que não se
justifica nos dois primeiros romances e nem na peça shakespeariana. Saramago, Dostoiévski
assim como Shakespeare conhecem bem a natureza humana e sabe que ela não se
guia por fendas dicotômicas, mas tem, no mínimo, uma dupla face que não chega a
ser claramente determinada. Os dois clássicos estão guiados pela sentença aristotélica
de que “as coisas são como são” e cabe ao escritor, sim, saber como que elas são
o que são, mas não apontar um divisor.
Por falar nesse lugar tão específico da literatura, eu não poderia
deixar de citar, para alargamento do tema, um importante livro publicado em 2007,
do escritor Moacyr Scliar, e que se chama Enigmas
da culpa. Classificado como ensaio filosófico, é a obra para se ler, como
terá dito boa parte das resenhas publicadas em torno do livro, é algo que se
pode ler fora dos bancos acadêmicos, mas cuidado, pela leva de textos citados, não
deve esquecer o leitor de fazer uma lista paralela de obras a título de melhor
esclarecer os Enigmas.
As representações da culpa estão para a literatura como o lugar para, em grande parte, a composição do drama do silenciamento do subalterno.
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