O barco da esperança, de Moussa Touré
Por Pedro Fernandes
Há quem duvide que deixemos de ser nômades ainda num lugar
remoto da história humana. O que não é verdade. Hoje ainda somos os mesmos daquele tempo de nomadismos.
Com condições mais ‘aperfeiçoadas’ em alguns casos e noutros
com condições mais dramáticas. Isso porque temos criado ao longo de nossa
história formas das mais diversas de capitalismos e o nomadismo se tornou uma
forma econômica de subsistência. Há algumas décadas, o Brasil foi um dos campões
do fato: ia-se do Nordeste para o Sudeste e, não há dúvidas já de que muito da
riqueza concentrada naquela região dependeu diretamente do esforço dos que lá foram;
ia-se do Brasil para outros países – drama até tema de novela. Hoje, vêm do
Sudeste para o Nordeste; vêm de outros países para o Brasil.
Mundialmente migram não só por melhores condições de trabalho,
mas devido às guerras, às ditaduras, aos fenômenos climáticos, às crises econômicas.
No interior dessas questões, o mal que boa parte dos países têm feito para a
África é responsável pelo que poderíamos chamar de esfacelamento do continente:
as profundas desigualdades sociais são resultadas das abruptas interferências
aí feitas. E em busca de melhores condições de vida estima-se que grande parte
dos mais de 3 milhões de imigrantes que vivem clandestinamente na União
Europeia sejam oriundos do continente africano.
É nesse contexto que Moussa Touré situa o seu O barco da esperança. Num vilarejo de
pescadores de Dacar, Senegal, são muitos os que encantados pela riqueza fácil dos
que partiram do lugar, pela inviabilidade econômica da pesca e fizeram fortuna
na Europa, que querem cumprir o mesmo
itinerário. Entre Dacar e a Europa o transporte é feito clandestinamente nas
pirogas. E são muitas. Em aventuras que de Odisseias apenas têm a forte ligação
dos que aí vão com os domínios mais fortes da natureza. Aventuras, no entanto em que seus Ulisses são mortais. A porta de entrada no continente velho se dá geralmente pelas Ilhas Canárias,
território espanhol. Daí vão para Paris, Madrid, Milão e outros grandes centros
para trabalhos braçais, em casas de família, restaurantes, contrabando, ou em
busca de cumprir o sonho de ser jogador de futebol. Grande parcela dos que
imigram são homens, os responsáveis pelo sustento da família.
Em O barco da
esperança Baye Laye é um capitão de uma piroga de pesca e é obrigado a
levar cerca de 30 homens, dentre eles uma clandestina, uma mulher, para
atravessar o Atlântico rumo à Espanha. O cenário de travessia é o que ganha
destaque no filme: o medo de enfrentar o mar para aqueles que nunca sequer o
viram, o medo da travessia assuntado pelas estatísticas orais de que apenas uma
de cada dez pirogas conseguem fechar o trajeto, as diferenças étnicas,
religiosas e culturais, as barreias linguísticas, a saudade de casa, o sonho
com o retorno e a riqueza, tudo, vai compondo o trajeto desses homens
primeiramente com rumo certo, logo depois desrumados, à sorte das correntezas
das marés.
O filme é um drama documental porque não reside aí apenas a visualização
das individualidades pessoais de quem imigra, mas sobretudo apresenta ao telespectador
uma das principais formas de reordenamento irregular porque passa a geografia
mundial contemporânea.
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