Erico Verissimo
“O que penso de mim mesmo? Depende da ocasião. Nos momentos
escuros, minha tendência é considerar tudo quanto produzi até hoje medíocre ou
mesmo mau. Nas horas claras, porém, olho com mais indulgência para a minha obra
e concluo que, dentre os vinte e poucos livros que escrevi até hoje, uns três ou
quatro possuem alguma importância e pelo menos um deles – creio que O continente – sobreviverá por algum
tempo. Sei que não sou, nunca fui, writer’s
writer, um escritor para escritores. Não sou um inovador, não trouxe
nenhuma contribuição original para a arte de ficção. Tenho dito escrito repetidamente que me considero, antes
de mais nada, um contador de histórias. Ora, nos tempos que correm, contar
histórias parece ser aos olhos dos críticos o grande pecado moral literário. A chamada
‘boa crítica’ considera a história ou estória,
como queiram, uma fama inferior de arte. Na minha opinião isso é, por um lado,
uma atitude esnobe e, por outro lado, um equívoco semântico segundo o qual a história passa a ser sinônimo de anedota, enredo, intriga.
Nota-se também hoje em dia uma grande preocupação como novos
meios de expressão verbal. Nunca a linguagem literária foi tão importante como
em nosso tempo. Fazem-se com as palavras e suas combinações sintáticas as mais
estranhas experiências. Estou certo também de que nesse setor minha contribuição
tem sido pobre ou nula. Não ignoro, porém, que para tentar descrever o indescritível,
exprimir o inexprimível, transmitir ao leitor certos estados de espírito
particulares – angústias, alucinações, sonhos, delírios e mesmo certos
pensamentos e sentimentos sutis do cotidiano – o escritor é obrigado a esquecer
a sintaxe gramatical e recorrer à sintaxe psicológica (no Brasil ninguém faz
isso melhor que Clarice Lispector e Guimarães Rosa, na minha opinião duas
figuras literárias de estatura internacional).”
(Erico Verissimo. “Um escritor diante do espelho”. Revista Realidade. São Paulo, novembro
de 1966)
***
Se Erico Verissimo tinha o ‘pressentimento’ um tanto
pessimista de que alguns poucos romances seus ‘sobreviveria por algum tempo’,
esteve, em certa medida certo. Mas, não terá sido por ineficiência do romancista, mas por uma perda de memória literária do Brasil, que é país rico nesse tipo de amnésia. O
continente, romance citado por ele, é o de abertura do ciclo O tempo e o vento, cujo último volume, O arquipélago fechou, recentemente, cinquenta anos, e ainda é
lido por boa parte da crítica como uma das obras mais importantes para a
literatura brasileira.
Particularmente admiro essa fala do escritor em se dizer
‘contador de histórias’; é uma consciência rara, e, se no seu tempo, já algo
posto em extinção pela mesma ‘crítica especializada’, alguns escritores fizeram
o estado de oposição à ideia do escritor-contador-de-histórias um instante
perigoso de dissolução do romance, mas não mais perigoso que o estágio contemporâneo em que o tipo se apresenta em
plenas vias de mau uso. Um grande escritor é aquele consegue inovar dentro de
seu código linguístico sem os excessos e o radicalismo; está em questão aqui, mais do que a necessidade de inovação linguística, o ‘como’
contar determinada experiência – e creio que deva ser essa direção para a qual
aponta o entendimento de Erico. É o próprio modo de contar que exige a forma de
apresentação da linguagem.
Mas, Erico Verissimo não terá produzido apenas um conjunto
de romances significativos com O tempo e
o vento, ele inova ao assumir a postura de que o romancista está
intimamente ligado ao espaço que ocupa e deve, por isso, pensá-lo. Se Jorge Amado
terá pensado a Bahia como ninguém, também Erico, na mesma proporção, terá
pensado o Rio Grande do Sul. Mas, como Amado que ao pensar a Bahia, pensou um
tipo de Brasil, Erico, no instante em que pensa do Rio Grande do Sul pensa
outro tipo de Brasil. E, além de romancista, foi também exímio contista, com
três antologias publicadas: Fantoches,
As mãos de meu filho e O ataque. Nos romances, além de O tempo e o vento composto do já citado O continente, O retrato, O arquipélago, também
publicou, antes, Clarissa, Um lugar ao sol, Olhai os lírios do campo, Saga,
O resto é silêncio e, depois, Ana Terra, O senhor embaixador, O
prisioneiro, e Incidente de Antares, outro romance que com os de O tempo e o vento, é um dos mais
conhecidos do público brasileiro. Além disso, escreveu ainda novela, literatura
infanto-juvenil, narrativas de viagem e duas autobiografias.
Nasceu em 1905, em Cruz Alta, Rio Grande do Sul, e quatro
anos depois, acometido de uma enfermidade a partir da qual os médicos do
interior já haviam dado como fatal para Erico, foi para Porto Alegre, onde os
pais entregaram-no aos cuidados do mais renomado pediatra do estado, que
diagnosticou meningite, agravada por uma broncopneumonia, e terá sido, então,
curado. No retorno a Cruz Alta, passa a estudar na escola e com um professor
particular; divide seu tempo entre os estudos, as idas ao cinema e o trabalho
do pai na farmácia.
Com a separação dos pais, Erico vai viver com a mãe e em
1924, quando a família da mãe se transfere para Porto Alegre ele vai junto, mas
para regressar no ano seguinte a Cruz Alta, permanecendo com o emprego que
havia conseguido na capital na filia do Banco do Comércio, profissão que só
exercerá por este ano, porque em 1926, aceita a proposta do pai e se torna
sócio na farmácia, ocupando então a função de boticário enquanto dava aulas
particulares de inglês e literatura.
É somente em 1929, que convencido por Prado Júnior, publica
seu primeiro texto, “Chico – um conto de Natal”, no mensário Cruz Alta em Revista, para depois,
novamente convencido, agora pelo farmacêutico Manoelito de Ornellas, a publicar
na Revista do Globo; novamente dois
contos, Ladrão de gado e Tragédia.
O retorno a Porto Alegre se dá no ano seguinte, quando a farmácia
sua vai à falência. Na capital, ocupa o cargo de secretário de redação da Revista do Globo; é quando conhece
importantes figuras do meio literário gaúcho, como o poeta Mario Quintana. Além
da redação na revista, divide o tempo fazendo traduções, até que em 1932, já diretor
da revista, publica pela Editora Globo, Fantoches,
uma antologia de contos, que é sua obra de estreia.
O escritor autografa a edição inglesa de seu livro A Noite, em 1956, na F. Bader Bookshop, Washington, Estados Unidos |
A partir daí, sua carreira literária se amplia. É galardoado
com vários prêmios acadêmicos e honrarias, visita vários lugares nos Estados
Unidos como professor de Literatura e História do Brasil e ocupa na Secretaria
da Organização dos Estados Americanos a direção do Departamento de Assuntos
Culturais da União Pan-Americana, cargo antes ocupado por Alceu Amoroso Lima. Por
essa época, já tem sua obra traduzida em pelo menos quatro países, Estados
Unidos, Inglaterra, França e Noruega. Mesmo lido em países da Europa já em
1954, só conhecerá o Velho Continente, cinco anos depois.
Morreu, em 1975, deixando inacabada a segunda parte do
segundo volume de memórias, além de esboços para um romance já batizado por A hora do sétimo anjo.
* O esboço para este texto, bem como a nota introdutória e as imagens aqui reproduzidas estão na edição dedicada a Erico Verissimo dos Cadernos de Literatura Brasileira do Instituto Moreira Salles.
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