Diagramas do humano constelam Ceará Mirim

Por Márcio de Lima Dantas 

Uma assinatura escritural

Walter Benjamin, no ensaio “A imagem de Marcel Proust”, relembra que todas as grandes obras literárias ou inauguram um gênero ou o ultrapassam. Esse caráter de excepcionalidade de um texto adequa-se muito bem a um nosso arremedo de classificação dos textos que compõem o livro O Céu do Ceará-Mirim. Tal fusão de gêneros diversos já havia se manifestada no livro O Spleen de Natal, no qual poucas vezes a linguagem advinda do jornalismo, tradicionalmente vinculada à função referencial da linguagem, adquiriu, por meio de vários artifícios estilísticos, uma dimensão estética consubstanciada em uma dicção que ostensivamente (e naturalmente) faz irromper a função poética da linguagem, que, em certas passagens de alguns capítulos, passa a ser a dominante.

Com efeito, aqui neste livro, é quase impossível não detectar um modo pertencente ao sistema literário: memorialística, crônica, poesia, autobiografia, confissões, ou reflexões de cariz íntimo, conto, literatura de viagens, epistolografia, afora aqueles oriundos do jornalismo, com suas marcas de agilidade, clareza e referencialidade: entrevista, perfil, reportagem, artigo. Desse modo, articula-se uma prosa ricamente eclética, não apenas no que concerne à forma, mas também na constelação de ideias veiculadas através de uma linguagem elegante e clássica, configurando por meio do simbolizado, em imagens literárias, uma rara antropologia capaz de desvelar sutilmente marcas do inelutável humano.

O escritor Franklin Jorge e o seu livro O Spleen de Natal. Foto: Carlos Duarte, 2006.

Conjugando destramente múltiplas formas de escritura, o autor parece se comprazer, em alguns parágrafos, com a poesia, pois além de ressaltar a dimensão significante do signo linguístico, ou seja, busca ressaltar a palavra enquanto signo palpável, daí a frase elegantemente construída, ciosa da perfeição sintática e da precisão semântica, numa cadência sóbria e elegante, em que não estão ausentes, repito, procedimentos oriundos da comarca dos versos, tais como aliterações e assonâncias.

A adjetivação que havia sido questionada ou abolida pela literatura modernista, emerge com propriedade para melhor apreender o entorno com seus objetos a serem descritos de maneira precisa, em seus fenômenos dinâmicos, integrando a ambiência das narrativas curtas, no qual o epos vem servir a um cortejo de protagonistas e co-adjuvantes de rara peculiaridade, intercalados por fragmentos e digressões nos quais o narrador retira o olhar da cena principal, fazendo valer acordes de reflexões, opinando, mangando, numa curiosidade de quem quer dar conta do mundo, numa inquietude de quem busca nomear, enfim, como alguém que se sentisse responsável pelas coisas e, para isso, manuseasse a linguagem de múltiplas formas, com a intenção de, ao imprimir a letra, despertar o gênio contido nos contornos dos objetos, extraindo da aura a essência que o sábio não deixa passar despercebido.

Desse modo, o texto permite entrever que a linha sinuosa definidora do contorno é o olhar poético, pois ao inventariar, também nomina e ressalta a dignidade de personagens com contorno autoral ou então como edificadores ou sustentadores daquilo, - do pouco, - que torna o humano atraente e faz crismar nossa capacidade de dar as costas ao banal, ao simplório e ao que merece desprezo, por não ser capaz de elevação e transcendência. Ao riscar a caligrafia de indivíduos, organiza e valoriza identidades que refogem ao lugar-comum da grande turba que nada chantaram ou elaboraram, nem via linguagem, tampouco por ações edificantes, com o intuito de erguer estelas positivas na condição do homem sobre o chão da existência.

Pois muito bem, eis a tarefa de Franklin Jorge como escritor: extrair a dimensão positiva de pessoas que pouco ou nada valem pelo que detém de material, mas pelo que possuem de experiências decantadas e que foram capazes de elaborar em discurso eivado de sapiência, muitas vezes, com travos de amarguras ou niilismo.

Mesmo quando faz uso de maneiras de escritura tradicionalmente vinculadas à atividade jornalística, o autor refrata a inania verba, laboriosamente lapidando o estilo por meio de imagens e cadências frásicas capazes de deixar à mostra a dimensão de significante do signo linguístico. Não há como deixar de chamar atenção para um ritmo bem peculiar à escritura de Franklin Jorge: linguagem escorreita e elegante, detendo a agilidade que os bons jornalistas obrigatoriamente devem ter para com o ato de redigir. Desnecessário proclamar que o autor, através de um labor de anos com a matéria verbal, logrou êxito em criar uma dicção própria que só os grandes escritores conseguiram. Quem há de duvidar que um excerto de texto, apresentado sem nome, pertence a um conto de Machado de Assis ou determinado fragmento à prosa metafísica de uma Elisa Lispector?

Há um outro aspecto interessante. É a alternância de planos temporais e espaciais, expressos pelo ágil câmbio da troca de falas entre o narrador e seus personagens, que se efetiva na mudança de parágrafos. Introduzindo, por meio de espécies de registros temáticos a fala do personagem em foco e o narrador, um procedimento advindo do gênero dramático: o diálogo, que não apenas funciona como mudança de vozes, mas se instaura como lugar da digressão reflexiva acerca do topos em evidência. Mas não apenas isso, o olhar adquire uma permissividade que o faz circundar pelo entorno, indo o foco narrativo alcançar um personagem secundário ou salientar objetos da paisagem em volta.

Como acima dissemos, o narrador, comporta-se como um poeta, ao elaborar uma espécie de inventário da experiência existencial de homens e mulheres habitantes da cidade de Ceará Mirim, outorgando uma letra e um número sem escolher por razões ideológicas ou algo que o valha. Vale o ente pelo que vivenciou, pelo que foi capaz de extrair de uma presença no mundo. Eis, em evidência, a nobreza e a dignidade outorgadas a muitos que não existiram para a polis.

A Ceará Mirim de Franklin Jorge. Canaviais 1. Tela de Franklin Jorge.

O anonimato de muitas pessoas simples, com suas sabedorias retiradas do embate com o empírico, é posto em evidência; tratadas com enorme seriedade, perdem suas características de eventuais “tipos curiosos ou pitorescos”, dispersos na sociedade, passando a se revestir de elementos que dizem de vetores emanados de uma psicologia profunda, ou seja, direcionam-se para arquétipos  ou estruturas antropológicas que poderiam ter se manifestado em qualquer etnia, lugar ou tempo. Vale a areia peneirada, retendo uma sílica mais brilhante, no ato de lançá-la de uma mão para outra.

Esses homens e mulheres compõem um belíssimo vitral de cores fortes que permitem a passagem da luz aos olhos de um leitor atento ao grande espetáculo da vida com seus personagens plenos de dissabores, fortuitas alegrias, andanças inimagináveis e, sobretudo, sincronias interessantes, nunca esperadas por quem apenas cruzou fortuitamente na rua ou teve um encontro social com tais pessoas. Com efeito, por meio de uma sublime intuição do espírito, consegue retirar belezas, didascálias  e sentenças de cunho existencial que imprime ao personagem um atrativo que só os que detém vida interior rica e multifacetada são capazes de atrair interesse.

Uma cartografia do humano

Diferente de um livro anterior, como O spleen de Natal, aqui não encontramos o corpo a corpo com pessoas do mundo artístico e intelectual da polis, configurando nas conversas um discurso capaz de elaborar por meio do discurso literário o modus vivendi de uma cidade, como vivenciam o cotidiano, como a representam. Um leitor atento será capaz de elaborar um diagrama etnográfico, com as principais estruturas conformadoras da mentalidade da urbe, resultante que é de um conjunto de elementos estruturantes, sendo capazes de riscar uma feição, uma fisionomia, um semblante, enfim, o ethos que todo aglomerado humano possui e deixa entrever nos nacos extraídos dos pequenos acontecimentos anônimos ou dos fatos sociais nos quais estão envolvidos macro-estruturas.

No livro O céu do Ceará-Mirim há um narrador que, no jornalismo, confunde-se com o autor, sempre atento aos movimentos semióticos do corpo, ao tom de voz, às indecisões de vocabulário, enfim, ao conjunto composto pela linguagem humana e seus deiticos adjutórios. O que encontramos é a humilde reverência aos destinos apagados, às subjetividades pisadas pela vida, ao anonimato de seres que se perderam na azáfama do cotidiano. Não importa se essa malta de personagens povoam o contorno íntimo do alter-ego do escritor: Jorge Antônio. O que vale retirar é a beleza da voz cambiante de uma velha senhora rememorando seu passado, de um aristocrata que traça o itinerário do seu pai historiador ou da curiosa vida do poeta Juvenal Antunes.


Canaviais 2. Tela Franklin Jorge.

Com efeito, é esse espaço onde discretos pés adentram pisando uma terra rica de pedras preciosas, selecionando intuitivamente as que já se encontram no ponto de lapidação para, através da linguagem literária, resgatar do abandono e do esquecimento que Cronos imprime a todos. Ora, o autor elegeu Mnemósine, inimiga daquele, como orago da sua escritura, não que esteja em busca do tempo perdido, mas optou por não deixar um tempo perder-se, ao intuitivamente eleger alguns indivíduos em suas singularidades como representantes do espírito de uma época.

Ocorre, sim, uma atitude hierática de quem contempla tudo com interesse. Silenciosa atenção de ícone bizantino, julgando pouco, fruindo mais do tempo do encontro ou da rememoração. Enorme gosto de organizar laboriosamente a palavra literária sem se preocupar em que chão de gênero está pisando. Avançam os períodos, como representantes de um espaço e um tempo de um lugar ermo, hoje anônimo, incorporado como cidade satélite da capital do estado, embora tenha tido no passado a opulência econômica e cultural.

Tal atitude é formatada através de orações curtas e bem construídas, com pausas elegantes e significativas. Esculturas de palavras que denotam uma grande segurança expressiva. Como um Euclides da Cunha, conhece o efeito de uma freada brusca de uma frase. Síncopes que pendem na cabeça do leitor, obrigando-o a refletir, sobretudo para aquele habituado com a leitura dos grandes textos da literatura ocidental, e que sabe das possibilidades icônicas do texto impresso no branco da página, mesmo em se tratando de prosa. Esse despotismo de experiência e reflexão contidos nas frases reverberam não apenas um alto valor estético, mas atingem um registro universal poucamente encontrado na literatura norte-rio-grandense.

Falo universalidade no sentido de um texto que só aparentemente é uma entrevista-perfil de um personagem da cidade do vale do Ceará-Mirim. Na verdade, é o desvelamento e apresentação de, digamos, um destino, ou seja, alguém que narra uma trajetória, circunscrevendo uma invariante no conjunto composto, quem sabe, por um reduzido número de histórias que se repetem pelas tantas vidas. A mitologia grega é um bom exemplo desse discurso articulado desde sempre. O livro O céu do Ceará-Mirim é um autêntico microcosmo plasmado por quem muito viajou, por quem escolheu a literatura como justificativa para a existência, contudo, nas entrelinhas, deixa entrever um certo fascínio pela vida de todos os dias com seus dramas e suas demandas prosaicas.

O escritor Franklin Jorge e seu mais recente livro, Ouro de Goiás. Foto de Frankie Marcone, 2012.

O lugar do escritor

A comarca do escritor é um distrito elevado onde poucos detém estofo para alcançá-lo. Lugar dos que não se contentaram com o banal-local, indo buscar na casa dos espelhos permanentemente acesos um espaço para o contemplar-se e também mirar o que o humano pode produzir de beleza e edificação,  expressas que estão na amizade, na solidariedade, na responsabilidade para com as promessas ditas, mas também provar o que o humano tem de cruel, pérfido, de mesquinho e de trágico. Sendo capaz de conhecer a face meritória, por que haveria de hesitar diante da face baça e sombria, das profundezas do abismo? Ora, todo mundo sabe que a cobra precisa do seu rabo para existir, é o seu serpentear que desloca o animal.

Classicamente moderno como tentei aqui demonstrar, Franklin Jorge é um lenitivo para o leitor da boa literatura, principalmente por que nos infunde uma coisa pouco valorizada hoje em dia, a saber, a dignidade de ser escritor, mesmo sabendo muito bem o preço que se paga por ser abrigo dessa bela forma de orgulho. O preço da aliança com as musas é caro (António Nobre).

Mas que fazer? Franklin Jorge aceitou a proposta de Lúcifer, subiu a grande montanha, contemplou (e viveu intensamente) o mundo dos homens...só que preferiu uma terceira via, nem o cume, nem o vale, elegeu quedar-se no abstrato e fascinante mundo da linguagem, espaço da representação e da encenação do real. Ao que parece, para o nosso escritor, bem mais interessante do que os homens convencionaram chamar de realidade.

Considero Franklin Jorge como um dos nossos mais argutos escritores, capaz de mergulhar em personalidades e extrair o fogo de uma essência, o pendor de um semblante, o âmbito de uma vida. Poucos foram capazes de elaborar uma ampla cartografia de nossa terra. Nesse sentido, retoma a chama de Câmara Cascudo, que se deteve muito mais no fora, no etnográfico, no histórico, do que no íntimo. Os dois se completam. Que bom para nossa literatura.


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