António Nobre
Não é desconhecida a relação que Florbela Espanca estabelece com a poesia de António Nobre. O reconhecido poeta português que se assume uma das vozes mais singulares da literatura em Portugal no seu tempo vive agora numa condição interessante: é, muitas vezes, pela obra da poeta esquecida no seu tempo que muitos chegam a Anto.
Em algum momento, e isso está na sua obra com todo trago de sinceridade ainda dominante na poesia herdada dos poderes do romantismo, ela diz se sentir fortemente levada pela capacidade poética de Nobre e não negaria em certa autocrítica uma incapacidade
sua em tornar-se poeta, diante do fenômeno de Só, a única obra que os dois viram publicada.
Só foi publicado em Paris, para onde foi morar depois de iniciar uma incursão literária em seu país; foi na Cidade Luz onde concluiu o curso de Direito. E foi, certamente, entre a variedade de sentimentos do sujeito fora de seu lugar que se viu preso nas próprias redomas, nas memórias que deram a cor cinza e amarelada dos poemas do livro descrito por ele próprio como o mais triste que há em Portugal.
Fernando Pessoa chegou a considerá-lo, entre esse lamento e nostalgia, ou talvez na composição da mais penosa das saudades, fonte “de todas as palavras com sentido
lusitano que de então para cá têm sido pronunciadas”. Florbela, esquecida do poeta de Mensagem e dos poetas do seu tempo cozeu seu lamento em “A Anto” – um dos poemas que provam seu apreço e ambição em torno do poeta.
Poeta da saudade, ó meu poeta qu’rido
Que a morte arrebatou
em seu sorrir fatal,
Ao escrever o “Só” pensaste enternecido
Que era o mais
triste livro deste Portugal!
Pensaste nos que liam esse teu Missal,
Tua Bíblia
de dor, o teu chorar sentido,
Temeste que esse altar pudesse fazer mal
Aos que
comungam nele a soluçar contigo!
Ó Anto! Eu adoro os teus estranhos versos
Soluços que eu uni e que senti dispersos
Por todo o livro-triste! Achei teu
coração...
Amo-te como não te quis nunca ninguém
Como se eu fosse, ó Anto, a
tua própria mãe
Beijando-te já frio no fundo do caixão!
Relações à parte, o fato é que a crítica não cansará de
apontar aproximações de Florbela com Nobre. E são muitas. Logo à abertura do Livro de mágoas e em poemas como “Languidez”
nesta mesma obra. Todo grande poeta terá lido os que o antecederam e se sentirá, certamente, limitado pela força dos antepassados. “Barreira” natural de propensão às rupturas e o feitio de novas obras.
No caso de Florbela, não deixa de ter certa razão a poeta: Só, que foi
editado na França, em 1892 – tem, portanto, forte influência do simbolismo
francês, numa época em que o verso de Mallarmé era o que se produzia em termos
de poesia – em terras portuguesas teve sua segunda edição, a que foi publicada seis anos
depois, vendagem de mais de três mil exemplares, o que leva a entender que, mesmo
passado todos os anos até que venha Livro
de mágoas, em 1919, seja ainda Nobre um dos poetas mais presentes.
Pádua Fernandes atribui uma série de características que
marcam o grande apelo popular dessa obra: “a linguagem que se avizinha da fala
coloquial, a busca de uma identificação sentimental com o leitor ... o
patriotismo ingênuo, o catolicismo, a forma cândida como trata o amor e o sexo.”
A obra de António Nobre, dirá Paula Morão, na mesma direção de Pádua, “está
muito marcada pelas paisagens que conheceu, quer se trate do Douro interior e
do litoral a norte do Porto, que conheceu na infância e na juventude, quer de
Coimbra, onde começou estudos de Direito que prosseguiria a partir de 1890 na
Sorbonne, em Paris”. Todas essas possibilidades deve ter desempenhado, sim,
junto aos leitores, um certo apelo à leitura, e fez do livro um Best-seller para a época.¹
O poeta nasceu no Porto, em 1867. Quando terminou os estudos
em Paris, em 1893, prestou seleção para o consulado e não chegou a ocupá-lo. Na
época, já padecia de tuberculose, doença que se agrava a partir de 1895 e levou
Nobre a uma peregrinação pela cura da doença em sanatórios nos Estados Unidos,
na Suíça, Madeira, e arredores de Lisboa, na casa da família no Seixo e na do
irmão Augusto na Foz, no Porto, lugar onde morreu, ainda aos trinta anos de
idade.
Apesar de significar nas letras portuguesas, Pádua Fernandes vê a obra de António Nobre como continuidade do que já se fazia em terras
portuguesas, outro elemento, aliás, que justificaria o recorde de vendas de seu
trabalho. Embora, o mesmo Pádua considere traços para uma linguagem modernista,
seja pelo caráter coloquial, seja pela forma como engendra o ritmo no verso, seja ainda pelo tom egotista que encontraria com o modernismo de Mário
de Sá-Carneiro; “Caranguejola”, tal como sublinha a crítica, é um poema que mantém relações intertextuais com “Males de Anto”. Aliás, o próprio poeta em Indícios
de oiro, livro findado dias antes de seu suicídio, António Nobre é
apresentado no poema “Anto”, de 14 de fevereiro de 1915. Vale citá-lo; são apenas duas quadras
Caprichos de lilás, febres
esguias.
Enlevos de ópio – Íris-abandono...
Saudades de luar, timbre de Outono,
Cristal de essências langues, fugidias...
O pajem débil das ternuras de
cetim,
O friorento de carícias magoadas;
O príncipe das Ilhas transtornadas –
Senhor feudal das Torres de marfim...
Enlevos de ópio – Íris-abandono...
Saudades de luar, timbre de Outono,
Cristal de essências langues, fugidias...
O friorento de carícias magoadas;
O príncipe das Ilhas transtornadas –
Senhor feudal das Torres de marfim...
Autor de uma única obra, como fizeram, na literatura portuguesa, autores como Cesário Verde e Camilo Pessanha, outros livros vieram
postumamente, resultados de significativos textos deixados, como Despedidas, Primeiros versos, além de significativo número de correspondências
como as reunidas em 1934 por Adolfo Casais Monteiro.
*
Neste pequeno catálogo reunimos o poema de abertura do livro Só, “Antonio” e duas cartas de António Nobre para o seu irmão Augusto do livro Cartas inéditas de António Nobre, a edição sobre a qual me referi anteriormente. Os recortes são da edição fac-símile editada pela Biblioteca Nacional de Portugal e da edição fac-símile editada pela Biblioteca Virtual da Casa Fernando Pessoa, respectivamente.
Notas:
¹ O texto de Pádua Fernandes referido é “Som e sentido das palavras”, publicado na edição especial da Revista Entrelivros sobre Literatura Portuguesa; já o texto de Paula Morão está no rol de Figuras da Cultura Portuguesa na página do Centro Virtual Camões.
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