Para ler "Rol da feira", de Márcio de Lima Dantas
Por Pedro Fernandes
Ainda se escrevem róis. E as qualidades do gênero têm suas
proximidades com as da poesia. Até chegar a esta observação, ler Rol da feira,
o novo livro de Márcio de Lima Dantas, apesar de ponto de partida para as
reflexões, não foi suficiente. É possível que, no instante, em que buscar essas
aproximações, encontremos as razões pelas quais dão sustento ao poeta para
assim denominar um feixe ímpar de vinte e três quartetos.
Aponta a princípio a semelhança formal. Um rol não ocupa a
dimensão total do papel. Mesmo que esse papel seja pequeno o bastante para não
conter o escrito, imaginariamente, ficam os espaços em branco para as margens.
Um rol geralmente agrupa uma sequência de elementos inventariados em série
enumerativa assemelhada à disposição do verso; e, se olharmos as
características da poesia contemporânea, nas de estágio surrealista, estamos
pensando em Leo Spitzer, as “enumerações nominais”, sequenciando elementos,
também é uma característica do poema.
O rol tem uma efemeridade. Só lhe serve no momento em que é
lido para lembrança do que precisa sem feito ou adquirido. O poema só nos serve
quando experienciado no gesto da leitura. O rol, no instante em que, formado
pela palavra, cumpre uma eternidade. Um rol está condicionado a remanejamentos
internos: fissuras, suturas, cortes, ampliação e padece de quase nunca uma
finalização. Também o poema, por determinações próprias, tem essa
característica. Fato é que o poema só se cumpre quando da morte do poeta, dada
não apenas pelo estágio de falência biológica do organismo, mas se o eu-lírico inválido
não assume mais as condições necessárias para revolver no papel o magma verbal.
Rol da feira foi-me apresentado pelo menos um ano antes da
forma que ora está publicado. Há na sua gênese pretensões muitos maiores que as
de agora. Não quero com isso dizer que o que tenho é matéria aquém do esperado,
nem alimentar esperanças que depois deste, apareça aí um livro dentro das
pretensões primeiras. Não. O tempo do poema é caro demais para deter-se em
questões tão meramente ilustrativas. Sim, uso da constatação privilegiada
apenas para dizer quanto efêmero pode ser o que aqui se ensaia, ou para,
desculpar-me publicamente por está diante de uma materialidade tão deslizante
como é a da poesia. E também porque esse livro de Márcio de Lima Dantas no
instante em que apresenta essa forma, acena para uma incompletude, como se
nesse rol, ainda coubesse mais coisas, ou como se esse rol de coisas fosse
apenas uma pequena parte de uma enumeração maior. Isso, no entanto faz-me
decidir pelo entremeio do mérito e o do não-mérito. Até porque o mérito de está
num ou noutro lado da coisa só me seria concedido se estivesse diante uma obra
acabada, mas diante de uma produção tão prolífera como a do autor de Rol da
feira, sinto-me obrigado a decidir pelo entremeio. O tempo se encarregará do
resto. Afinal, se o tempo do poema é caro demais, qualquer eternidade, próxima
ou distante, será o lugar ideal para aferir determinadas conclusões.
O que se reaviva nesse último livro é algo que já havia
observado em Xerófilo, publicação indexada na terceira edição do
caderno-revista 7faces: a palavra como instância transfigurada. Não sei se
notei com esses termos, mas façamos de conta que tudo que eu tive oportunidade
de dizer sobre o livro na época em que ele apareceu está resumido nessa ideia.
A operação ensaiada pelo poeta é processo muito sofisticado, mais sofisticado
do que a reinvenção do código linguístico por meio da introdução de novos
vocábulos, porque nele é a finesse do sentido o que é reinventado. Ao contrário
dos poetas céticos que apostaram por longa data no “ceticismo da palavra”, para
recuperar os termos de Hofmannsthal, Márcio de Lima Dantas crê na palavra como
peça na condução do leitor à produção do estado poético.
Em Rol da feira, já desde o título e a sequência de poemas
como “Arma branca”, “Galo”, “Cigana”, “Gazo”, “Cacimba de areia”, “Sinuca”,
“Casa sertaneja”, e há outros, mas bastam estes, apesar de rememorar nomes,
tipos, o leitor não encontrará neles uma evocação realista – com toda
implicação assumida entre o termo e o objeto –, mas uma apropriação dos
sentidos que nomes e tipos possam evocar para sua ressemantização. Arrisco-me a
dizer: o poeta se apoia na vida e nas palavras e entende o gesto poético como
uma ficção deduzida da observação. E se descartei os subterfúgios da complexa
relação entre termo e objeto, descarto também os sinônimos de falsificação,
fraude ou de mentira para a ficção. Prefiro crer que o trabalho aqui é o
alargar as fronteiras tão precárias da realidade e de novas maneiras de dizer
as coisas. Noutras palavras, a transfiguração evocada aqui não se guia por além
de, mas pela pequenez da universalidade, alimentada integralmente pelos
resquícios da palavra. Tem seu nascimento, sua existência, sua movimentação na
sofisticada relação desenhada entre o eu-poético e a ‘arma branca’; “No embate,
um/ só corpo emana”, um poema que lembrando o que vemos reinventa suas
fronteiras.
Ligações a esta post:
>>> Rol da feira é o nome do novo livro de Márcio de Lima Dantas publicado encartado na 5ª edição edição do caderno-revista 7faces. Para lê-lo, basta ir por aqui, já para ver a edição, por aqui.
>>> Junto à 3ª edição do caderno-revista 7faces foi publicado Xerófilo, também do poeta. Acesse o livro por aqui.
* Texto publicado no Caderno Domingo do Jornal De Fato, dia 12 de agosto de 2012, p.13.
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