Pais e filhos
Ontem foi celebrado no Brasil o Dia dos Pais. A relação entre pais e filhos na literatura é largo tema. Em muitos casos guiando-se pelos mitos bíblicos como o da relação de suplício encarada por Abraão e seu filho Isaac ou de Jesus como seu pai divino. Por essa razão, depois que descobri, ainda em junho deste ano, este texto no espanhol, de Ivan Thays, achei a movimentação ensaística precisa num tema que, se desenvolvido com profundidade, certamente daria um importante trabalho acadêmico. Se o leitor catar bem o texto não deixará de encontrar uma dessas ricas listas de leitura.
Eneias escapa de Troia em chamas. Federico Barocci, 1958. |
Uma das anedotas mais memoráveis da mitologia grega é a de
Enéas quem, em meio da cidade incendiada de Troia, carrega o seu pai Anquises
sobre seus ombros e se reúne com outros troianos para fugir para a Itália. As esculturas
e as pinturas representam Enéas como um homem jovem e forte, às vezes titânico
e outras com músculos mais discretos, e Anquises como um ancião de barba, a
pele tipo de pêssego, o medo nos olhos, cercado pela morte.
No conto Não ouves
latir os cães?, Juan Rulfo volta à história e é o pai quem arrasta o filho.
De modo diferente, em Na estrada, de
Cormac McCarthy, onde um pai conduz seu filho à salvação, no relato de Rulfo não
sentimos amor filial entre pai e filho. Mas não há rancor. Na novela de McCarthy,
ao contrário, a relação entre pais e filhos caminhando pela estrada deserta é
bela, um canto lírico em meio do apocalipse, como é a história de Anquises e
Enéas.
O filho de Na estrada
é inocente, apenas um menino, enquanto que o filho do conto de Rulfo é um
criminoso e está ferido de morte por uma de suas trapaças. Para ele, a relação do
pai e seu filho em Não ouves latir os
cães? é ambígua: por um lado, o rancor e a hostilidade do pai, que pensa
que o filho merece o castigo, e por outro a responsabilidade que sente como
progenitor, que o obriga a assumir a ‘carga’ (literalmente, pois o leva nos
ombros e lhe dificulta o caminhar) do que engendrou.
Contudo, às vezes essa ‘carga’ se dá em sentido oposto: é o
pai quem termina representando um peso para o filho. O romance A hora azul de Alonso Cueto mostra esta
situação. O pai já morreu há muito tempo, o filho tem uma vida próspera, sem
conhecer a corrupção de seu pai (um ex-fuzileiro naval durante a violência terrorista,
sequestrador e violador de mulheres, uma das quais a converte em sua amante),
assim que não deveria existir maior carga para o filho. Entretanto, essa carga
existe e é descoberta quando o filho se inteira da existência da amante de seu
pai – além de todos seus abusos – e insiste em buscar a essa mulher. Uma insistência
absurda, quiçá, mas necessária para o protagonista quem, não contente com
encontrá-la e conhecê-la, se apaixona por ela e mantém uma relação, tomando assim
o lugar de seu pai morto. Mas à diferença deste, trata a sua amante com ternura
e compreensão, corrigindo assim o passado para superá-lo, nomeadamente, para
livrar-se da ‘carga’ que seu pai lhe há imposto inconscientemente.
Em Hamlet também é um pai espectral que pede ao filho que o substitui e o vingue. Mas, diferente do protagonista de A hora azul, Hamlet não aceita essa responsabilidade e retira o
corpo de campo quando querem por sobre ele o peso do pai. Fugir não ajuda em
nada a Hamlet, quem finalmente deverá render-se e sacrificar-se assumindo sua
fatalidade. Em Hamlet as cargas impostas pelo passado paterno não podem fugir nem
esquivar-se, há que assumi-las a qualquer custo.
Contudo, embora o papel de pai e filho é sempre um princípio
de autoridade, uma relação vertical, nem sempre é um papel estático. Às vezes o
pai passa a ser o filho e vice-versa. Em Patrimônio,
uma obra autobiográfica de Philip Roth, o narrador se rebela ao converter-se em
pai de seu pai. Sabe que seu pai está enfermo, o vê extinguindo-se e parece impossível
de encaixar essa imagem com a do homem forte que lhe deu proteção e segurança a
ele e a seu irmão. Mas, uma noite em que seu pai entra numa crise e está tão indefeso
como um bebê a que há de mudar as fraldas, Roth vai em seu auxílio e termina
finalmente assumindo o papel de pai. É interessante o título: Patrimônio. Devemos assumir que o
patrimônio do filho, em algum momento, é o de passar a ser pai protetor de um filho ancião.
Esse trânsito é duro e tremendamente complexo. Há uma cena comovedora: Roth,
que lhe tem cedido sua parte de herança ao irmão menos afortunado economicamente,
ante ao espelho do banheiro lamenta sua generosidade. Não se trata de dinheiro,
mas de patrimônio. Ao final, decide tomar a bacia de prata e a escova com que
seu pai fazia a barba há anos. Agora lhe pertencia; era seu patrimônio.
Julio Ramón Ribeyro tem um conto extraordinário sobre essa
troca de papéis. Se intitula As garrafas e os homens. Um pai vai buscar
seu filho no trabalho. O sujeito é um vagabundo, um bêbado, um playboy, que o abandonou quando criança.
O filho conseguiu se sobressair com esforço e agora trabalha num clube de tênis
como sparring. Ao ver o seu pai
indefeso por trás das grades do clube, esquece o passado e o leva ao bar onde
se reúne com seus amigos, e o apresenta pomposamente como seu pai. O homem sabe
desenvolver-se bem onde há álcool, assim é que deixa de ser o tipo frágil do início
do conto e se mostra espirituoso, de muitos amigos e um língua solta. Absolutamente
bêbado, menospreza as mulheres e chama de frívola a mãe do protagonista. Ele não
pode deixar passar esse insulto e o desafia para um duelo. Saem ambos para a
rua, como dois boxeadores ébrios, e se detém num beco. Pai e filho, não um
sobre o outro, como no mito de Enéas e Anquises, mas um à frente do outro. O pai
arremessa, o filho se esquiva do golpe e o tipo cai no chão. Está nocauteado. O
ganhador do duelo foi o filho. Contudo, antes de retirar-se, se aproxima do bêbado
caído no beco, remove um anel com pedra preciosa e o coloca no dedo de seu pai.
Logo, num gesto de imenso carinho e proteção, toma a precaução de girar o anel
para esconder a joia e evitar que a roubem. O filho tem voltado para o pai.
* Texto de Ivan Thays publicado no Blog Vano Oficio.
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