Conhecimento do inferno, de António Lobo Antunes
Por Pedro Fernandes
Faz poucos dias que findei um ensaio que põe lado a lado a
obra dos escritores José Saramago e António Lobo Antunes. A mídia que quer
rivalizar tudo, esteve, enquanto o primeiro esteve vivo, criar caso entre ele e
o segundo. E alguns estão mesmo crentes que o primeiro supera o segundo ou o
segundo supera o primeiro, como se nesse território das letras as coisas fossem
definidas como num ringue, o que já sabemos, velhos de longa data naquilo que
lemos, que não é tão simples assim, nem tão fácil de apontar com o dedo em
riste alguém melhor do fulano, cicrano ou beltrano. A exceção dos literatos de
comércio, escritores que tem o trabalho literário como modelagem artística, não
são melhores ou piores do que outros. Sabemos todos que cada um tem a
literatura que tem e, no fim, todos têm uma parcela significativa no panteão da
literatura. O resto? Bem, o resto, é fofoca, coisa que tem andado no auge nos
dias de hoje, quando reparamos, por exemplo, que o sujeito sem pé nem cabeça se
põe a dizer asneiras do tipo “Fernando Pessoa é gay” ter seu sujo trabalho mais
bem aceito e largamente comercializado a ponto de vencer a própria obra do
poeta.
Também faz poucos dias que findei a leitura do terceiro
romance do António Lobo Antunes, Conhecimento
do inferno, publicado em 1980, e que fecha uma trilogia iniciada com Memória de elefante e Os cus de Judas, ambos publicados um ano
antes, quando o escritor voltou da Guerra Colonial na África, largou a carreira
nas artes médicas e fixou-se, de vez, nas artes literárias. Devo dizer que é, a
primeira vez que leio a obra de um escritor pela linearidade das publicações. E
o bom desse trajeto é o de acompanhar o desenvolvimento ou aperfeiçoamento das
técnicas de escrita da parte do autor. Se os dois primeiros romances são aparentemente
simples, exigindo do leitor uma reaprendizagem linguística para se por diante
do texto, aqui, o esforço não se resumirá a esse processo. Terá agora de
conseguir fazer imensas fendas textuais e conseguir por através delas palmilhar
um caminho mais ou menos seguro para chegar até o desfecho da narrativa e poder
dizer em quatro palavras: o romance trata disto.
Os dois primeiros livros têm seus traços eminentemente
autobiográficos como já terá sondado boa parte da crítica, seja pela
proximidade profissional das personagens que vão narrando os fatos, seja pelo
desenvolvimento de algumas situações epocais: como a estadia na África no período
da Guerra Colonial. Sendo que no primeiro, estamos diante do narrador a remoer
memórias soltas, muitas delas revistas e desenvolvidas no segundo romance. E o
segundo romance deter-se na experiência da guerra. Agora, reduzindo em poucos
dizeres, o terceiro, é uma volta para ler simultaneamente os acontecimentos
desenvolvidos nos dois primeiros romances. Isto é, a trilogia desenhada por
Lobo Antunes cumpre um itinerário que não é linear – sim, porque nada nesses
romances obedece a linearidades – e, sim, um movimento que é como um jogo de
memória espiralado. O movimento narrativo desse último romance parece ser a
peça-chave para o entendimento geral da trilogia. Os três se desenham em torno
dos mesmos temas e enxergam cada um no determinado instante de visão.
Se adentrarmos ao Conhecimento
do inferno notaremos que a narrativa transcorre em três instâncias: a vida
pessoal, a vida profissional e a estadia na guerra. Se em Memória de elefante sobressai a vida pessoal e em Os cus de Judas a estadia na guerra,
nesse sobressai a vida profissional. Quero com isso dizer que o narrador elege
como ponto de vista a posição do profissional para remoer as mesmas questões que
são desenvolvidas nos outros romances. Aqui, os referencias autobiográficos são
nitidamente explícitos. Damos com um médico psiquiatra que revê sua atuação profissional
no instante em que está escrevendo um livro intitulado por Memória de elefante, ou damos com uma personagem nomeada por
António Lobo Antunes, enfim, mutretas linguísticas para deixar o leitor
encalacrado no jogo de espelhos construído pelo narrador. E os fatos que
transcorrem são todas rememorações desenhadas pelo próprio personagem-narrador,
de modo que o externo se confunde com as elucubrações mentais, de um parágrafo
a outro, por vezes no interior da própria frase cabendo ao leitor as distinções.
Nesse caudal de pensamentos que desfilam feito a viagem de
carro empreendida pelo personagem – trilha que vai se desenhando no texto pelas
marcações no mapa (Algarve, ponto de partida, passando por Albufeira,
Messsines, Santana, Aljustrel e Lisboa, ponto de chegada) – prevalece o seu
contato com a profissão nobre e mãe das outras profissões médicas, a
psiquiatria, desde seu primeiro contato com o manicômio até sua atuação médica
no Hospital Miguel Bombarda, um claustro dos loucos. Aqui o lugar “inferno”
marcado no título da obra se confirma pela presença deslocada do sujeito nesse
universo em que a loucura é tratada como uma patologia clínica a ser manipulada
pelo isolamento social, os sedativos, os eletrochoques e toda sorte de
tratamentos que reduzem a persona do
louco ao estágio do mais baixo grau de selvageria.
Se nos romances anteriores, o escritor parece querer
confrontar o leitor com a própria linguagem, usando da descrição seca e das
torrenciais de vocábulos pesados, levando a presenciar o travelling mental ou a experiência do horror, aqui a linguagem e a montagem
do enredo comungam para que leitor se dê ao conhecimento da experiência vivida
pelo próprio escritor. É necessário pensar que este romance pode atuar como
instrumento de matéria histórica pelo modo como a prática médica e o tratamento
dado à loucura são aí retratados. Ou ainda, como instrumento de denúncia, cujo
interesse está em expor, pela via da experiência, e pelo tratamento irônico conduzido
pelo escritor à profissão psiquiátrica que é camuflado pelo ideal de
normalidade condicionado socialmente.
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