Sombras da noite, de Tim Burton
Por Pedro Fernandes
O filme valerá por duas razões que enumero logo no princípio deste texto: 1. Tim Burton continua insubstituível em fazer do cinema a arte da paródia; 2. Johnny Depp continua insuperável na sua capacidade de travestir-se nas personagens que lhes designam ser.
Sombras da
noite judia de várias coisas, mas duas hão de chamar logo a atenção do espectador. Uma, o anacronismo temporal. Somos situados numa espécie de
prólogo narrado em primeira pessoa a fim de que entendamos a rixa secular e
semieterna entre o vampiro Barnabas e a bruxa má de porcelana Angelique
(Percebem o trocadilho? Anjo / bruxa). Aqui, é o início da própria nação
estadunidense construída pela tradição inglesa lá pelos idos 1700.
Antes de ser
Barnabas, era ele um moço rico, filho de uma tradicional família que se
mudara para o novo mundo e fizera fortuna com a pesca. Angelique, a empregada
na mansão que nutre uma paixão maior que tudo por ele, que vê nela
somente aquilo que é, uma bela moça. Está, pois, armado o mover da trama.
Sentindo-se rejeitada, Angelique agarra-se com as forças negras e vai de um a um
destruindo o clã onde trabalha: primeiro, os patrões, depois, a futura mulher
do amado e o amado, que num gesto ultrarromântico joga-se penhasco abaixo tão
logo não ter conseguido evitar o suicídio da noiva. É aqui que nasce a
maldição: Barnabas, depois de ter toda sua vida pessoal e sentimental arrasada
se encontra agora preso num corpo que não lhe pertence, o de um vampiro, que é
levado para um caixão, onde ficará até que uma escavação o liberte.
Já aqui
daremos com um vampiro que não quer ser o que é e situado num tempo que não é o
seu, uma vez que estamos agora na loucura dos anos 70. Barnabas então está
há pelo menos alguns séculos de seu tempo de origem: e esse desnível temporal
favorecerá o desenvolvimento das situações humorísticas: desde a desconfiança
do terreno onde pisa, a confusão com a luz de um automóvel como mais uma
travessura de Satã, o entendimento de que o M do McDonalds é sim o M
de Mefistófeles, a confusão de sexos do Alice Cooper - que faz uma palhinha no
filme - aos gestos mais "selvagens" da antiga cultura.
Já a outra
coisa é que podemos ler Sombras da noite como uma grande brincadeira
desconstrutiva com o verdadeiro vampiro, o Drácula, de Bram Stoker, que fiquei
sabendo, terá uma nova versão para o cinema dentro em breve. A tradição
familiar tão evocada por Barnabas é a mesma que fez a personagem de
Stocker primar pelo título nobiliárquico de conde, mas a sede de sangue do
original, a ânsia pela eternidade e ainda a incapacidade de amar, tudo isso, são
alterações feitas propositalmente por Burton e surtem um efeito impecável:
porque reelabora o mito, mas de uma forma que difere do tradicionalmente
conhecido.
Sem falar
que a gestualidade cinematográfica de Tim está aqui em plena atuação: o gosto
pelo gótico e pelo retrô somados com a sua necessidade de subverter as formas.
Ainda que seja este um filme que nasce de um material pronto, porque é
inspirado num seriado para TV dos anos 1970, terá ele com essa alquimia da
subversão reinventado o gênero a ponto de ser um produto de Tim
Burton.
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