Fernando Pessoa desfigurado
Por Pedro Fernandes
Julio Pomar. Triplo retrato de Fernando Pessoa com corvo. |
Todo e qualquer estudo – grande ou pequeno – está suscetível a erros.
Ainda mais se o pesquisador for um tanto ganancioso e confiar plenamente nas
suas suposições. É sabido que suposições e mentiras quando lapidadas ao extremo passam a atuar como verdade e, pronto, o desastre, depois
disso, estará feito.
Quando saiu por aqui o catatau Fernando Pessoa – uma quase
autobiografia, de José Paulo Cavalcanti Filho (Editora Record, 2012), ainda o peguei em mãos com
afoito interesse em comprá-lo. O preço, entretanto, me fez recuar. Depois,
estive lendo algumas críticas que destacavam que o próprio autor proclamava não sei quantos
heterônimos além dos três conhecidos (Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Alberto Caeiro), a revelação de que Fernando Pessoa havia sido homossexual, pelo
menos até certo tempo de sua vida e depois havia desistido da ideia; nunca
praticou sexo com outros homens, mas algumas atitudes, como patrocinar com o próprio custo a edição de materiais de amigos seus homossexuais, como António
Botto e Mário de Sá-Carneiro – o primeiro, gay assumido – e ainda um dos
heterônimos, tudo atestaria isso. E outra, a mais cri-cri e, supostamente
atribuída a António Botto, a de que Fernando Pessoa teria um pênis muito
pequeno, o que lhe afastou do envolvimento com mulheres: E toda essa fofoca de mesa de bar ou de
beira de esquina que andou correndo os jornais e revistas do Brasil inteiro se
complementam com uma entrevista embaraçosa que vi com o próprio na emissora
portuguesa RTP, por esses dias. Bastam! O disse-me-disse de Cavalcanti Filho
extrapola o âmbito do biográfico, do autobiográfico (pretenso título para o
arremedo de obra que produziu) e não tem nada de crítica fundamentada que dê
para lê-lo seriamente. O lado fanático do autor cumpre o interesse de reduzir a
figura idolatrada ao nível mais baixo possível para que ele, o biógrafo, então se prevaleça
sobre a imagem do poeta. E isso é, no mínimo, atitude merecedora de reprovação.
Agora, Teresa Rita Lopes num texto de lucidez impecável publicado no
dia 27 de maio no caderno português Ípsilon dispõe o livro de José Paulo
Cavalcanti Filho no lugar que ele realmente pertence: a estande dos livros de besteiras, besteiras que nunca deveriam ter saído das gavetas de seu autor. Rita Lopes foi professora
na Sorbonne e na mesma instituição defendeu a tese de doutorado Fernando Pessoa et le drame
symboliste – héritage et création, nos idos de 1975; desde 1981, tornou-se
professora catedrática de literatura comparada na Universidade de Nova Lisboa,
onde dirige o Instituto de Estudos sobre o Modernismo. Ensaísta, poeta e
teatróloga premiada, ela trabalha sobre Fernando Pessoa num grupo de estudos
fundado desde 1964, tendo publicado vários estudos e textos inéditos do poeta
português em França, Portugal e Brasil.
Em torno do sucesso estrondoso que o livro de Cavalcanti Filho tem
causado em Portugal, onde foi lançado recentemente, Rita logo pergunta – “Os
que aplaudem, leram? As 710 páginas? Eu li. Quantos desses poderão silabar
estas 4 letras?” E acresce: “Como tantos falam de Pessoa dele sabendo tão
pouco, este ‘simples guia para não iniciados’ (p.13) arrisca-se a modelar o
saber de incautos e incultos leitores” – passando discorrer sobre as falácias
do livro em questão: Fernando Pessoa, apesar dos problemas com alcoolismo no
fim da vida, nunca teria se deixado reduzir pelo “deprimente retrato do bêbado
louco megalômano, aspirante a Prêmio Nobel”;
a extensa lista de heterônimos é falsa – “não sabe o que heterónimos
quer dizer: Fernando Pessoa, Fernando António e F. Nogueira Pessoa contam na
lista como 3 heterónimos! Na sua sôfrega caça ... até contabiliza assinaturas
casuais em livros ou papéis soltos ... Outro erro é listar pseudónimos
ocasionais, que P. [Pessoa] inventou às dezenas ... pseudónimos de charadistas
... nomes casuais ... personagens de ficção ... amigos imaginários de infância
de que não há rasto escrito ... pessoas reais”. Para Rita Lopes “este livro é
uma montagem de textos pescados a esmo, de P. e seus ‘outros’, mas sem
atribuição, tudo misturado com a prosa de B. [biógrafo] que quis – e ingenuamente
o declara – imitar o estilo de P. Aqui e ali introduziu, sempre sem dar o seu a
seu dono, afirmações alheias. Ficamos assim a braços com uma tremenda amálgama
de citações – estropiando, inúmeras vezes, não só palavras, mas frases
inteiras. Resulta um ‘coquitéu’ ... com pedaços de poemas , que cita como prosa
e mistura com outras prosas que não diz de quem são.”
Alguém de nome como o autor pernambucano e de dinheiro como ele que se
aventura a compor um rito de basbaquices deve ter uma obra do tipo redefinida: um
calhamaço de fofocas gratuitas. A pergunta é, como uma editora se aventura a
publicar isso ao redor do mundo? E a resposta vem fácil. As editoras estão
todas sanguessugas, sedentas por sangue-dinheiro e têm gosto acurado pela
frivolidade. Acho que tomei a atitude certa em economizar quase R$80 por um
livro que não me agregaria em nada.
* Este texto foi publicado no dia 24 de junho, no caderno Domingo, do jornal De Fato. Aparece aqui com pequenas alterações.
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