Carlos Drummond de Andrade e o tempo das revistas
“Essas revistas, lidas, relidas, alisadas no excelente papel couché, fizeram minha iniciação literária, muito imperfeita mas decisiva. Guardo até hoje visualmente de cor, por assim dizer, páginas e páginas das duas. Sei a posição das gravuras, os títulos das matérias”.
Drummond, Tempo vida poesia
Quando eu era criança, lembro-me que minha avó costuma
guardar entre uma pilha de velhos papéis aquilo que ela chamava por folhetos. Havia
entre eles os cordéis e estes sim eram os folhetos, mas havia também algumas
revistas; O cruzeiro era uma delas,
lembro-me bem. Esses papéis avulsos eram o entretenimento dela nas horas vagas na
fazenda. Devem ter sido lidos de frente para trás e trás para frente até serem
incorporados nas histórias que contava para os netos, misturando-se aí o
inventado com o acontecido. Como minha avó e muitos do interior do Brasil, as
primeiras revistas surgidas no eixo Rio-São Paulo – em Natal, depois fiquei
sabendo que houve algumas – serviram para ligar os brasileiros uns aos outros,
contar do que se passava na realidade grande, projetar imaginários sobre um
povo.
Também Drummond teve seu primeiro contato com o universo da
escrita por através das revistas. E pode-se mesmo dizer, sem erro, porque o
próprio poeta assim admitiu, que elas foram de grande importância para a construção
de sua personalidade literária. Dissemos por aqui que um dos contatos com a
arte do desenho (Ver Carlos Drummond de Andrade e a arte de desenhar) se deu
pelas páginas da O Tico-tico, onde
leu a adaptação para os quadrinhos As
aventuras de Robinson Crusoé. Terá sido também pelas páginas das revistas
que no interior de Minas, o poeta teve contato com o que se fazia em termos de
poesia e prosa na cena literária do Brasil.
Criadas como veículos de forte e rápida expansão nas
comunicações, as revistas fizeram conexões que fugiam do laço escritor-leitor e
promoveram alguns importantes nomes. Um poeta potiguar, Jorge Fernandes, do
interior do país, não teria alcançado o “caráter” literário que ganhou nas
próprias letras do seu estado se não fosse, por exemplo, as várias publicações
que fez na Revista de Antropofagia. Foram
também nas revistas, onde se formou a maior parte dos escritores que ocuparam a
cena do movimento literário modernista. Enfeitiçados pela ideia da rapidez e
precisão comunicativa já tão bem experimentada na Europa, a ideia de se fazer
revistas espalhou-se Brasil inteiro.
Na década de 1920, seduzido por esse movimento de revistas, Carlos
Drummond de Andrade juntou-se a outros escritores modernistas de Minas Gerais e
deram pulsão a um periódico que atendeu pelo nome de A revista. Como as publicações de vanguarda, a revista só durou três
números, mas o suficiente para servir de intercâmbio entre os escritores da
província e os de renome nacional como Mário de Andrade, Manuel Bandeira,
Ronald de Carvalho... O próprio
Drummond terá se beneficiado dessa troca porque logo aparece sendo publicado
nas páginas de alguns dos periódicos mais importantes dirigidos por esses
escritores, como a já citada Revista de
Antropofagia lançada em São Paulo, em 1928. É nela, aliás, onde ocorre a
primeira publicação do seu poema mais famoso, “No meio do caminho”, celeuma
entre os literatos da época. De modo que, vamos perceber que a revista terá
sido o importante espaço para o exercício da escrita. Muitos dos poemas
publicados aí foram depois reescritos e com alterações para os livros.
A revista teve edições
publicadas entre o biênio 1925-26. A seu respeito, Drummond certa vez, numa
entrevista deixou dito: “Realmente, como eu disse, nós não tínhamos consciência
plena de que estávamos fazendo um movimento de renovação literária. A nossa
tendência era renovadora, nós fugíamos aos cânones clássicos, mas também não
tínhamos um programa. Quando nós fundamos A
revista, recebemos um conselho muito sábio de Mário de Andrade, que era o
seguinte: ‘Você deve fazer uma revista compósita, uma revista misturada, em que
o novo se misture com o velho.’ Então nós publicamos lá, por exemplo, um
trabalho de doutor Orozimbo Nonato, um advogado muito conceituado, muito
simpático, que depois foi ministro do Supremo Tribunal. Ele escrevia em
linguagem quinhentista. Numa revista moderna isto mostrava as contradições
internas. E mesmo porque se nós tentássemos fazer uma revista exclusivamente modernista
nós não conseguiríamos, o nosso grupo não era bastante forte, nem numeroso para
fazer uma revista de 40, 50 páginas só de um ponto de vista, de um ângulo
modernista. Nós tínhamos que combinar pessoas, combinar nossos espíritos,
nossas tendências com as de outras pessoas que eram contrárias a nós e que nos
toleravam, tinham boa vontade para conosco, compreendeu?¹”
O comentário de Carlos Drummond se refere a uma
correspondência recebida pelo poeta de Mário de Andrade: “Você parece ter
vergonha da revista. Meu Deus! quanto temor e quanta dúvida. Quem dá o que tem
não fica devendo. Vocês não podem e nem Rio nem São Paulo podem fazer uma
revista moderna às direitas sem ficar igrejinha como Klaxon. E isso é
contraproducente, Carlos. Façam uma revista como A revista botem bem misturado o modernismo bonito de vocês com o
passadismo dos outros. Misturem o mais possível. É o único meio da gente fazer
do público terra-caída amazonense. E isso é que é preciso. Ele pensa que está
firme no passadismo e de supetão vai indo de cambulhada, não sabe e está se
acostumando com vocês. E quanto à parte de vocês afirmo que está mais
interessante. Li, gozei, discuti, não fiquei de acordo com certas coisas fiquei
de acordo com outras pulei de contentamento afirmo que vocês são uns bichos.
Pro Martins de Almeida já comentei rapidamente isso. Continuem. Se A revista morrer por falta de
subsistência também não faz mal. Viveu. Eis o importante. Façam de mim o que
quiserem. Sou de vocês.²”
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O Letras reuniu num fôlder algumas das publicações de Carlos Drummond de Andrade na sua A revista. Com base no material disponibilizado on-line pela Brasiliana/USP fizemos um recorte das diversas faces do incipiente poeta nos idos de 1925 e 1926.
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Notas:
1. CURY, Maria Zilda Ferreira. [Entrevista]. In . Horizontes
modernistas: o jovem Drummond e seu grupo em papel jornal. Belo Horizonte:
Autêntica, 2001.
2. Carta datada de 23 de agosto de 1925. Manuscrito
preservado pelo Arquivo-Museu de Literatura Brasileira.
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