Sim, o problema é conosco
Por Pedro Fernandes
Quem dera eu pudesse ver na prática o que já testemunharam
as páginas da história! Mas, desastre, a história não se repete. É fluxo
contínuo e não permite voltas. Talvez possa ensaiar voltas, mas trajetos
idênticos não se repetem. Mas, ver na prática o que testemunharam as páginas da
história não seria ainda uma querença particular de, a todo custo, repetir um
passado não vivido? Sim, eu pertenço a uma geração que pegou um estado já mais
ou menos delimitado pela luta de meus pais, avós, bisavós... Mas, eu não tenho
vocação para remoer passados. Ao acreditar no passado como irrepetível, eu não
posso ter uma querença de uma repetição a todo custo. “Ver na prática o que já
testemunharam as páginas da história”, demonstrarei, não tem nada a ver com um
apego ao passado tampouco com a querença de sua repetição. A coisa é mais
complexa.
Nesse mesmo percurso que faço em vistas para o passado
também posso fazer para o futuro. E como acredito na irrepetibilidade do
pretérito também tenho forte tendência a repelir utopias. Todas as utopias são
vãs. E nos enganam mais ainda que o espectro do passado. Elas depositam em nós
uma possibilidade de futuro ou retira de nós a capacidade de reverter
determinadas situações hoje. Elas nos dão uma certeza vã de que as coisas irão,
num futuro a-deus-pertence, se ajustar. Pergunto mesmo: a sociedade que herdei
de meus pais, avós, bisavós... não está hoje no tempo de suas utopias? E que
mudou? O que eles dizem para nós daquilo que suas utopias elaboraram em si para
hoje?
Alguns se perguntarão: mas tão jovem e já desacreditado? A
resposta à essa suspeita já está inscrita nas próprias considerações que
antecipo antes da chegada dessa pergunta. Não sou desacreditado. Do contrário,
talvez acredite demais. Talvez não. Talvez ainda acredite o suficiente. Tenho
é, sim, a certeza de que as coisas são como são, estão como estão, porque falta
de nossa parte. Não é culpa das utopias de nossos antepassados. Não precisamos
é fazer grande esforço para nos convertermos em passadistas para enxergar que a
luta pelo bem comum virou fumaça ou coisa de museu. Talvez a ideia de bem comum
tenha sido desfeita, ou o próprio bem comum tenha caído nas garras da descrença
e se tornado coisa vã, inutilidade. Talvez nunca tenha mesmo existido e todas
as lutas travadas em torno de si tenham sido meras lutas individuais. Isto é,
talvez tenhamos aprendido ao longo das lutas que a luta individual era sim o
que sempre buscávamos e, por isso, hoje, lutamos com tanta veemência e
convicção, cada um por si.
Aquele país de cegos, tão bem descrito por José Saramago em
seu Ensaio sobre a cegueira, está muito bem representado nesse estágio a que
nós chegamos, na redoma contemporânea a que nós estamos reduzidos. Sim, de um
lado ouço, “Votaram em candidato X, agora aguentem as consequências”,
de outro ouço, “E adianta ir para a rua (?), ir para a rua não resolve
nada”. Percebem os argutos os sintomas da cegueira. Os abobalhados
individualistas presos nos seus casulos pré-fabricados para si próprios não,
não percebem. Imprimiu-se nas suas cabeças, cabeças comuns, que o sistema democrático
reduz-se a depositar um voto a cada quatro anos para colocar ou retirar o poder
de um indivíduo; imprimiu-se igualmente, na mesma sequência, que não têm poder
algum, que tudo acaba em pizza, que tudo permanece como está porque os donos da
lei são os de cima e, portanto, é sonho vão crer que se ultrapasse a fronteira
do povo para a fronteira dos comandantes do povo.
Isso é grave. E grave por dois motivos e ambos se reduzem a
um sentido, o da permissividade. Esse comodismo dá chances aos que figuram o
papel de representantes do povo, a não cumprirem com o devido no cargo a que
foram eleitos. Depois, os futuros ocupantes desses papeis, que deve sair desse
grupo de acomodados, uma vez no poder, acham que não devem fazer grandes
esforços a fim de cumprir com sua função. A formação de uma sociedade
permissiva põe em risco nossa própria sobrevivência enquanto sociedade. Sim,
esse sistema aparentemente complexo e autossustentável que criamos pode vir
desmoronar rapidamente - e sem tom profético, tenho forte convicção de que já
vamos longe nesse progresso degradatório. O tom de descrédito posto nas falas
que enumerei anteriormente é suficiente também para medirmos essa velocidade.
Sim, não acredito que, pelo fato de termos posto no poder
alguém que não cumpra com os desígnios por nós depositados, nos obrigue a
aturá-lo pela leva de quatro anos de um mandato. A incompatibilidade de
governo, me parece, é regra primeira para se repensar o que devemos agora fazer
com essa representação. E acredito que ir para a rua adianta alguma coisa. Feio
é guardar insatisfação e jogar num canto e noutro os impropérios contra a
baderna de pequeno grupo que ainda tem a coragem de por a cara na janela social.
Volto ao desejo expresso no início do texto. Aqui ele se ilumina. É que no
passado uma população saiu às ruas por eleições e tiveram; no passado a mesma
população saiu às ruas por reprovar um representante do povo e o resultado foi
sua deposição do poder. Falta é antes por em prática o entendimento de que
vivemos, sim, numa sociedade e ela só pode funcionar plenamente mediante a
participação vigilante e crítica de toda ela. Falta ainda a capacidade de
darmos chance ao bem comum – coisa difícil, porque nossa natureza tende para o
mortal individualismo – mas essa chance é capacidade possível de ser
exercitada. E como não somos nossos antepassados, sabemos que as utopias estão
mortas e sabemos que o rumo que tomamos tem nos levado ao degredo, falta-nos,
sobretudo, ação, porque sim, nós podemos.
* Texto publicado na edição do dia 13 de maio de 2012, no caderno Domingo do jornal De Fato.
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