Ray Bradbury: um lugar entre outros mundos
Por Jacinto Antón
Luto em Marte e em nossos corações. A morte de Ray Bradbury, na terça-feira (5) à noite, aos 91 anos, o mestre da ficção mais lírica, deixa órfãos eles, os marcianos de olhos amarelos em seus crepusculares canais de sonhos, mas também a todos os que aqui embaixo, seus filhos leitores, temos viajado com ele em astronaves às estrelas e bebido o licor de verão das infâncias perdidas sob os alpendres da mítica Green Town, Illinois.
Em essência, com toda sua cultura e sabedoria, Bradbury – e ao mesmo tempo reivindicava isso – nunca deixou de ser um menino de 12 anos, o assustado e vivaz Douglas Spaulding com tênis de O vinho da alegria (1957), o precioso romance em que relatou sua infância transmutando sua Waukegan natal em Green Town, sua pequena arcádia pessoal de cometas e salsaparrilha.
Luto em Marte e em nossos corações. A morte de Ray Bradbury, na terça-feira (5) à noite, aos 91 anos, o mestre da ficção mais lírica, deixa órfãos eles, os marcianos de olhos amarelos em seus crepusculares canais de sonhos, mas também a todos os que aqui embaixo, seus filhos leitores, temos viajado com ele em astronaves às estrelas e bebido o licor de verão das infâncias perdidas sob os alpendres da mítica Green Town, Illinois.
Bradbury, que dispõe já de uma cratera com seu nome em Marte e que pediu que
suas cinzas sejam espalhadas no planeta vermelho, será lembrado por muitas
coisas, pelas Crônicas marcianas,
essa excepcional coleção de contos sobre a colonização do planeta Marte que
mudou para sempre o gênero fantástico e entusiasmou nomes como o de Jorge Luis
Borges; O vinho da alegria e O campanário das trevas, dois dos
romances mais comovedores escritos sobre o delicado momento em que as crianças descobrem
a existência do tempo, da morte e da responsabilidade; pela distopia Fahrenheit 451 com seu mundo de livros
perseguidos por bombeiros mas salvos por leitores contumazes num das mais
bonitas fábulas sobre a perenidade da leitura – um tema tão atual. Será lembrado
também por seus contos sombrios, os de O
país de outubro que tanto influenciou autores de terror como Stephen King.
Mas, sobretudo, lembraremos de Ray Bradbury sua capacidade de mesclar numa combinação
única a fantasia, a poesia, o maravilhoso, o nostálgico e a inocência.
Criando nos sonhos, esperanças e pesadelos dos Estados Unidos que
passaram em poucas gerações de ser uma sociedade basicamente rural e abraçar as
mais portentosas e assustadoras tecnologias, Bradbury, que nasceu em Waukegan, Illinois,
1920, se entusiasmou, temendo o tempo com as novidades e os artefatos,
mostrando em suas histórias o prodigioso da ciência e ao mesmo tempo advertindo
de que o ser humano não deveria perder sua alma em áreas dela. “Não devemos
levar nossos pecados a outros mundos”, dizia.
Era um grande moralista, como lado indubitavelmente ingênuo e
paternalista, inclusive reacionário, que às vezes o distinguia, mas tinha o dom
de transportar-se a um mundo de emoções e sentimentos diversos e irresistíveis.
Suas metáforas diáfanas são como encaixes de cristal que arranham o coração e
inundam os olhos de lágrimas.
Havia, sem dúvidas, junto dele a luz e o otimismo e um lado obscuro de
medo e culpa no qual crescia fértil o musgo do espectral e do macabro. Poucos autores
escreveram como Bradbury sobre a morte e a condição da perda. É impossível não recordar
algumas de suas histórias sem estremecer-se, a do bebê assassino, a do cachorro
que regressa dos mortos, a do homem que se faz de guardião da morte e cega o
campo da vida até encontrar os caules que são sua mulher e seus filhos... Em
contos e romances essa sombra, esse outono, é o contraponto inevitável de um
grande canto vital de celebração da existência e de beleza do universo.
George Burns e o jovem Ray Bradbury. |
Em essência, com toda sua cultura e sabedoria, Bradbury – e ao mesmo tempo reivindicava isso – nunca deixou de ser um menino de 12 anos, o assustado e vivaz Douglas Spaulding com tênis de O vinho da alegria (1957), o precioso romance em que relatou sua infância transmutando sua Waukegan natal em Green Town, sua pequena arcádia pessoal de cometas e salsaparrilha.
Esse lugar sonhado precisou ser abandonado aos 14 anos quando seu pai,
empregado da estrada de ferro afetado pela Grande Depressão, se mudou com a
família para Los Angeles. Grande leitor de literatura pop, amante das histórias
em quadrinhos, começou a publicar em fanzines e em 1941 vendeu seu primeiro
conto. Em 1950 publicou a obra pela qual sempre será lembrado, Crônicas marcianas, um conjunto de
contos vagamente unidos pelo nexo da invasão humana a Marte que transpiram
assombro e uma atmosfera de sobrenatural melancolia e solidão.
Quem terá visitado a velha casa de Bradbury junto à praia de Veneza, na
Califórnia, onde o escritor viveu com sua companheira Maggie ao casar-se em
1947, não pode deixar de pensar na influência dessa pequena Veneza com minúsculos
canais na criação do Marte das Crônicas.
Não há muita ficção científica no sentido convencional nesse livro, como não há
em seus romances e suas centenas de contos, reunidos em títulos tão como O homem ilustrado ou As frutos dourados do sol.
Um dos principais do gênero, Bradbury é, sem dúvidas, muito diferente
de outros populares mestres seus contemporâneos como Isaac Asimov ou Arthur C.
Clarke. Só agora que nos damos conta perdemos no universo uma tríplice aliança
espacial.
Ligações a esta post:
* Este texto é uma versão livre para “Ray Bradbury viste de luto Marte”, publicado aqui em El País.
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