Pelos cem anos da poesia de Augusto dos Anjos

Por Pedro Fernandes

Capa da 1ª edição de Eu, de Augusto dos Anjos. Em 2012, a obra fecha um século de existência.



A palavra para o poeta é material a ser instrumentalizado para a fundação de universos próprios – universos que correm ao lado do mundo comum, o enformam, conformam e deformam. Por isso, a palavra é sempre móvel e viva, ainda que pareça matéria inerte; inesgotável, ainda que pareça ter seu sentido cerrado num conceito em estado de dicionário; sempre livre, ainda que pareça matéria presa no papel.

No caso de Augusto dos Anjos, a palavra adquire mobilidade, vivacidade, inesgotabilidade e liberdade da condição de oralidade e obtém a encenação e um tom vocal muito próprio. Não há como ler Eu – livro-enigma que fecha um século neste 2012 – sem que tenhamos na nossa frente uma boca deslocada do corpo que enuncia e encena a beleza verborrágica da palavra, toda ela pulsante e refigurada nos seus versos.

Apropriar-se da leitura da poesia do paraibano é primeiro um exercício mental de reconstrução da unidade leitora. É necessário incorporar uma dicção nova. É necessário foragir-se da introspecção e se deixar levar por uma voz que galga o silêncio do papel e assume um ritmo frenético. Pulsa aí aquilo que na poesia de Castro Alves também se faz ouvir: um eu-lírico que tem na oralização da palavra a existência viva e plena do plasma poético. Apenas na poesia do poeta paraibano a voz do eu-oralizador deve ajustar-se à medida do descompasso da consciência do eu-lírico, que não se limita por uma verticalidade ou horizontalidade da linha dorsal que sustenta o texto. 

Nos poemas do Eu, por mais que se configure um desarranjo natural do poema, em nenhum é possível nos guiar por uma consciência lúcida.  Em Augusto dos Anjos irá sempre predominar um desarranjo da própria consciência lírica que é constantemente invadida por uma perturbação vinda da própria psicologia do poeta ou do seu contato com a externalidade das coisas, que transforma cada verso numa unidade disforme do corpo do poema. Essa disformidade não condiz, evidentemente, com o plano formal do texto. É notório que o poeta engendra o poema num esquema que rompe com a forma tradicional, mas esse rompimento restringe-se ao material vocabular.

Do ponto de vista da composição ainda estamos diante de versos e estrofes bem desenhadas. A consciência lírica, no entanto, nascente dos signos que compõem o poema, é visivelmente tomada por uma perturbação transgressora. Movimento esse só palpável, por exemplo, em poetas como o contemporâneo Roberto Piva, com um diferencial evidente: o cenário no qual estão imersos ambos os poetas obedecem cada um sua particularidade. E parece findar aí porque se olharmos até para as condições de aparecimento dos dois poetas no âmbito de uma tradição lírica brasileira encontraremos suas semelhanças.

A poesia de Eu é constantemente tomada por um motivo visionário ou ainda pelo desregramento dos sentidos, como se estes fossem condições verdadeiras para a sua existência. Funde-se, através do desvelamento da nudez vitalícia e o andamento da vida, entre autor e obra, um compromisso absoluto que extrapolam os limites da expressão racional. A consciência da sua lírica poética é sistematicamente abalada ou convulsionada pelo estranhamento frente a ordem natural e aparente das coisas e um encantamento pulsional pela desordem e pela primitivização de tudo. 

Se o poeta é um fingidor, Augusto dos Anjos é já desde o título que imprimiu à sua obra. A primeira pessoa da cadeia dos pronomes pessoais se mostra como uma unidade solitária, mas essa unidade será totalmente corrompida com as movências assumidas pelo seu posicionamento nos pouco mais de cinquenta poemas de que se compõe o seu livro, cada um com forças muito díspares e universos próprios. Ao se mostrar na voz de uma sombra (falo do poema de abertura, "Monólogo de uma sombra"), tal como o anjo torto de Drummond, a consciência separada do poeta encaminha-lhe ao trajeto que por ele deverá ser percorrido. O poeta tomará para si suas palavras e transmuta-se em sujeito-sombra, localizando a entrância das coisas o seu estado de permanência. 

Os movimentos internos do Eu apontam para a conformação de uma atmosfera ora densa ora conflituosa, ora em repouso ora conturbada. O poeta, no entanto, não está reduzido a um desses sentidos apenas; sua consciência perturbada é resultante da peleja própria do poeta fruto de sua atividade liliputiana frente à ordem do universo. Ao encontrar-se como um mundo já em si desencantado, sua tarefa é ainda mais árdua e a saída parece está na subversão do comum em imagens estonteantes a ponto de náusea no leitor. Cem anos depois, o conjunto de atributos monstruosos desenhados pelo poeta se corresponde positivamente com as limitações do homem perante o próprio homem. Sua angústia é da palavra. Por mais que outros mundos sejam fabricados a partir dela, tudo parece se reduzir na impossibilidade da plenitude, apontando-nos para uma inesgotabilidade do sentido das coisas. 

* Uma versão desse texto foi publicada no caderno Domingo do jornal De Fato, no dia  10 de junho de 2012.

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