O corvo, de James McTeigue

Por Pedro Fernandes



O filme não é a primeira adaptação a partir da obra mais conhecida de Edgar Allan Poe; para um poema que já serviu de inspiração para outros filmes, seriados, HQs, música etc. não será, evidentemente, uma releitura mal proposta pelo australiano James McTeigue que irá encardir seu modo de vida no panteão literário. Até porque trazendo o poema para um espaço de comercialização, ele passa a ter uma aceitabilidade além daquilo que nem o próprio Poe, por mais que previsse um sucesso futuro, iria imaginar. Não é que O corvo - o poema - baterá recordes de vendagem, mas irá, cada vez, transfigurando-se em imaginário mítico mesmo na cabeça daqueles que esbarrarem com o filme sem quaisquer ideia de que Poe existiu de verdade e que escreveu um poema com esse nome.

Quando vi o filme procurei a todo tempo qual o sentido de o nome do poema servir de título. Confesso: minha capacidade mental é mesmo muito limitada para alguns casos. E nesse caso não encontrei o sentido. Fora alguns momentos em que nos deparamos com o seu autor num clube de senhoras modelando palavras e lendo trechos do próprio texto, não haverá outro elemento que o justifique. Ainda que apareça, entre um assassinato e outro a imagem do pássaro carniceiro, com faro tão apurado que espanta; ainda que o escritor redivivo abra o filme com a ave à espreita dos seus restos mortais.

É outubro de 1849. O filme nasce do dado biográfico wikipediano, porém biograficamente comprovado, de que Poe, a 3 do mês e ano mencionados foi encontrado vagando e delirante nas ruas de Baltimore; levado ao Washington College Hospital, morreu quatro dias depois sem estabelecer qualquer diálogo de futuro que pudesse ser utilizado como fonte de esclarecimento para a situação na qual foi encontrado. O episódio é bem aproveitado no filme de McTeigue para construir uma atmosfera policialesca que dará mote à narrativa, parecendo ser este o interesse do cineasta - cobrir os instantes fiais da vida do poeta.

Focando no fim para o começo da trama, recurso nada novo nos dois modos narrativos, no literário e no cinematográfico, encontramo-nos com o autor de O corvo a mendigar tostões para suster seu vício pelo conhaque e, claro, atender às exigências comerciais impostas pelo jornal que publica seus contos, extremamente bem quistos pelos leitores. O gosto humano pelo macabro é já um elemento que o jornal explora comercialmente e Poe tenta explorar artisticamente. Daí então um assassino daqueles que só ficamos a saber do rosto no fim da narrativa, mas que não custa nenhum exercício mental mais sofisticado para alcançar sua imagem, entra em cena desafiando a mente de um daqueles detetives a Agatha Christie: um serial killer que comete seus assassinatos inspirando-se nas tramas de Poe. Nada original; já conhecemos esse tipo que sai à surdina cometendo crimes para desafiar as mentes desavisadas da polícia. Detectada a ingenuidade do assassino, Poe é convocado a atuar ao lado dos investigadores a fim de encontrarem o sujeito. Perde-se o escritor e entra em cena uma personagem hollywoodescamente montada pela interpretação, até onde posso julgar, decente de John Cusack.

Basta que o serial rapte sua pretendente futura esposa - sim, Poe aqui já está viúvo e enrabichado por uma senhorinha de boa patente em Baltimore - para que a presença do poeta deixe de ser mera atuação coadjuvante à polícia para ser decisiva, caso de vida ou morte, para o desfecho das investigações e a salvação da mocinha. Inaugura-se um arremedo romântico num filme de suspense. O filme só não perde mais porque tem boa fotografia, bom andamento da história e é capaz de cumprir seu propósito de suspense sem ser sufocante. Também a equipe consegue reproduzir muito bem a atmosfera gótica que ficou impregnada no famoso poema do estadunidense e, claro, consegue uma explicação nada convencional para o episódio enigmático da sua morte: Poe, teria sido envenenado por alguém que tinha ambição no seu trabalho, alguém que no filme traveste-se de fanático para por em ação o plano ficcional e, aos poucos, passa a ocupar as narrativas como personagem principal.

Tudo isso recuperaria os deslizes cometidos ao longo do filme, não fosse o decepcionante final da narrativa. Essa necessidade do politicamente correto do cinema hollywoodiano em querer a todo custo uma vitória do bem sobre o mal estraga e mata muita coisa. A ideia de uma vitória do assassino daria ao filme o mistério-Poe de ver o mundo: um sujeito que se inspira nos feitos fictícios e passa a servir de personagem para o autor para logo em seguida constatar que às vezes é o personagem quem supera o escritor, como o corvo que, se não supera a imagem do próprio Poe a esconde. Mas, não é isso que acontece, o que é uma pena!


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