Nelson Rodrigues
"Não sou pornográfico. Pelo contrário, me chamo de moralista. O único lugar onde o homem sofre e paga pelos pecados é em minhas peças." Assim se pronunciou Nelson Rodrigues. Mas, o epíteto de anjo pornográfico não se desfez e chegou mesmo a intitular uma biografia escrita em 1992 por Ruy Castro. Hoje, o escritor integra a galeria de um dos mais importantes dramaturgos que a literatura brasileira já produziu, se não for engano e exagero, o único. O drama da existência humana enxergado pelo prisma da morbidez foi o que mais explorou, o que mais o destaca nesse cenário e, talvez por isso, aquele que melhor viu a sociedade por aquilo que ela é: um bem moldado arcabouço que esconde atrás de si aquilo que realmente seus habitantes são.
No mês de agosto deste 2012 marca o primeiro centenário de Nelson que nasceu no Recife; ocupa ainda o lugar de um escritor por ser descoberto, uma vez que, muito tardiamente foi que se gestou um público que vê no seu trabalho uma riqueza artística considerável. O que não é novidade. O trabalho de qualquer grande escritor irá sempre despertar pelo menos duas vias críticas consideráveis: a dos que gostam e aplaudem e a dos que não gostam e se recusam no reconhecimento de sua grandiosidade. Ainda mais num país como o Brasil que, desde a Semana de Arte Moderna de 1922, se formou grupinhos específicos de intelectuais que trocam críticas de tapinha nas costas para os do seu meio e se volta ao repúdio dos demais. Ao que andei lendo, Nelson esteve distante durante muito tempo desse universo se é que não esteve a vida inteira.
Mesmo ele tendo ido ainda criança para o Rio de Janeiro, porque seguindo a regra comum de seu tempo, nordestino que se prestasse a ver-se possuidor de alguma coisa deveria ir ter no sudeste e muitos assim foram e ficaram principalmente na capital carioca e em São Paulo. É no Rio que se constrói todo arcabouço imaginário do Nelson escritor: as intrigas familiares, as tramas de assassinatos, suícidios ganhariam uma dimensão na sua cabeça e alcaçariam seu auge no interior do jornal fundado por seu pai, o periódico A manhã, onde ele começou sua carreira como jornalista policial, ainda com 13 anos de idade e onde presenciará o assassinato do seu irmão Roberto Rodrigues.
O caderno "Crítica" era mantido por Nelson e além da cobertura política se compunha do relato policial de crimes que arrancava sucesso entre os leitores. Em dezembro de 1929, a coluna iniciaria uma publicação das "causas ocultas" do divórcio de uma importante mulher da sociedade carioca, Sylvia Serafim. A mulher, não satisfeita com o relato aí publicado, foi à redação do jornal à procura de Mário Rodrigues, o pai de Nelson. O pai não estava e ela, à queima roupa, assassinou Roberto. Nelson, que estava numa outra repartição do jornal presenciou a agonia e a morte do irmão. A tragédia dava início aos anos mais difícieis da família Rodrigues. Em trecho das Memórias, Nelson escreve: "eu e toda minha família conhecemos uma
miséria que só tem equivalente nos retirantes de Portinari": o pai, deprimido, morreu poucos meses depois e no ano seguinte, quando Getúlio Vargas toma o poder, a redação do jornal é fechada pelo regime. Sylvia fora absolvida do crime apoiada pela imprensa concorrente e pelos sufragistas.
A luz do fim do túnel vem por Mário Filho, amigo de Roberto Marinho, que leva Nelson a trabalhar para o jornal O Globo, mas sem salário; a efetivação do cargo só seria feita anos depois e como repórter. No período de probatório, contribuía noutros periódicos como o Correio da manhã, O jornal, Última hora e Jornal do Brasil. É quando o escritor adoece: a doença que já atingira parte da família - o irmão Joffre morreu aos 21 anos vítima dela - atingiu Nelson e, por duas vezes, a tuberculose. Numa delas, sai do Rio e vai para um sanatório em Campos do Jordão e tem o tratamento custeado pelo dono d'O Globo. No jornal, Nelson escrevia crítica de ópera, editou um suplemento infantojuvenil, roteirizou algumas histórias em quadrinhos, entre elas um texto de Oscar Wilde, "O fantasma de Canterville", "O mágico de Oz", de L. Frank Baum, "O sonho de uma noite de verão", de Shakespeare, "Alice no país das maravilhas", de Lewis Carroll e "Um yankee na corte do Rei Artur, de Mark Twain.
A primeira peça para o teatro acontece em 1941. A mulher sem pecado superada apenas com Vestido de noiva dois anos mais tarde. Encenada por Ziembinski. Juntos, a peça se faz uma das fundadoras do moderno teatro brasileiro. A montagem, o processo de ensaio, têm agora, o comando do que passou a se chamar por diretor. Além do que, em Vestido de noiva o teatrólogo soube reproduzir os vários planos da história escrita por Nelson Rodrigues - o imagináio, o sonho e a realidade. Em 1948, a parceria se repete com Anjo negro. O novo teatro está agora colorido pelo trágico-denúncia. A peça de Nelson critica o racismo disfarçado da família burguesa brasileira.
Todo esse tom inovador do dramaturgo será acompanhado de perto pela censura. Álbum de família, por exemplo, escrita em 1945, só seria adaptada 22 anos depois; Anjo negro sofreu tentativas de censura religiosa e só foi aos palcos dois anos depois de pronta. Doroteia foi mal vista pelo público e esteve em cartaz por muito pouco tempo.
E vieram Valsa nº 6, A falecida, Senhora dos afogados, Perdoa-me por me traíres, Viúva, porém honesta, Os sete gatinhos, Boca de ouro, O beijo no asfalto, Bonitinha, mas ordinária, Toda nudez será castigada, A serpente... E romances: Meu destino é pecar, Escravas do amor, O homem proibido, O casamento, entre outros. Contos com destaque para A vida como ela é e Elas gostam de apanhar, crônicas com destaque para as de futebol, sua grande paixão: "sem futebol esse povo fica neurótico. O carioca nem
precisa ir ao campo e pode passar sem rádio. Mas precisa saber que há um
jogo à mão e que o Maracanã está aberto. Amigos, outro aspecto
considerável de nossa vida futebolística: o estádio vazio deprime a
cidade. É preciso, para a nossa alegria, que ele esteja cheio e
vibrando. Gostamos quando o Maracanã transborda e há gente pendurada até
no lustre." Nelson era Fluminense de sangue.
Muitos dos seus trabalhos foram transformados em novelas para a TV Rio e a TV Globo, como Engraçadinha... seus amores e seus pecados; ou para o cinema, tendo em algumas destas produções atuado diretamente no processo de montagem.
Nelson morreu em 1980.
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