Memória de elefante, de António Lobo Antunes

Por Pedro Fernandes

Memória de elefante é o primeiro romance escrito por António Lobo Antunes; foi publicado em 1979, depois de voltar de uma permanência na Guerra Colonial na África, experiência que irá perpassar como material temático boa parte da sua obra. É o primeiro romance de uma trilogia que continua com Os cus de Judas e Conhecimento do inferno; os três, talvez se configurem como os mais importantes da carreira, não por razões estéticas, certamente, porque Lobo Antunes possui outros mais bem acabados romances (entre nós, é um autor ainda por se conhecer), mas esses três livros dizem a que veio o médico meter-se com a escrita. Os três são sucessos de crítica e inauguram em Portugal uma visão nada romântica da desenhada entre os daquele país sobre o que foram os anos de ocupação portuguesa nos territórios africanos. Não que estejam esses romances reduzidos a esse propósito, mas é o tema um dos mais caros à ficção contemporânea que se forma no pós-74. 

O romance dá contas de um médico psiquiatra que não está bem da mente; encontra-se profundamente deprimido e sai perfazendo na sua trajetória diária, entre a rotina e o desvio dela, uma busca pelo real sentido de tudo, já que se encontra numa Lisboa desencantada, regressado da experiência mais terrível até então vivida, recém-separado da mulher e das duas filhas, desencantado também com a profissão e, nada, absolutamente nada, parece convencê-lo a ter razões boas e próprias para se manter nesse mundo. Não é que seja uma personagem em crise existencial, mas padece de um augúrio perante a vida e traz consigo um caudal de dúvidas sobre si e seus atos cuja explicação parece, a todo tempo, escapar-lhe sorrateiramente por entre os dedos e indo esconder-se num lugar indeterminado, cabendo-lhe um esforço além do seu limite para alcançá-la. 

O conjunto das suas ações, engendradas aí, denotam uma aventura psíquica tal qual outras personagens da literatura universal: um Bloom de James Joyce que o diga. Está o escritor imerso nas divagações da personagem que busca uma leitura do vivido e o que poderia ter sido vivido. Difere, entretanto, do Ulisses de Joyce pela razão simples de sentir-se incapaz de captar todos os movimentos mentais, expressivos e gestuais. A personagem de Memória de elefante está tomada da melancolia; é alguém que não está bem psicologicamente e o que busca é a razão das coisas, por que elas sendo como são não se mostram justificáveis ao sujeito. Talvez aí, possamos ler o título desse livro como parte do lastro de uma ironia muito bem elaborada do seu autor para com os próprios romances que têm nas volições psíquicas o seu espaço de representação mais adequado. Lobo Antunes quer dizer com ele, como esses romances são incapazes de uma apreensão totalizadora do real empírico, certa ilusão que alimenta de alguma maneira a prosa romanesca de Joyce e seu tempo.

Sobressai a densidade da sua escrita, porque o escritor português segue o ritmo psicológico da fala. E faz uma coisa que até hoje não me dei conta em outros escritores: o constante cambiar da voz narradora, sendo ora assumindo-se em primeira, ora em terceira pessoa. E a troca dada de um parágrafo a outro ou mesmo no próprio parágrafo. Temos aí a grande cilada que nos leva a se perder no enredo e, não poucas vezes, precisar voltar ao princípio do que líamos para recuperar o que nas nossas suturas podem resultar num fio narrativo. Essas idas e vindas de quem narra cria no livro estantes tencionais em que a voz que narra se confunde com a da personagem narrada, criando uma empatia entre ambos que só pode ser lida como nalguns casos como uma sendo a outra. Processo que primeiro torna as fronteiras das duas categorias narrativas mais frouxas e segundo desestabiliza as bases entre o ficcional e a realidade. 

A leitura de Os cus de judas trará o entendimento de que este é, sim, um romance introdutório; a consciência abalada do médico psiquiatra em Memória de elefante terá motivos mais que suficientes para o estágio de apatia sobre o mundo e o desencanto sobre si próprio. É notável como António Lobo Antunes se estabelece com uma literatura única no âmbito da literatura portuguesa desde o primeiro instante. E há quem acredite na que toda estreia de um escritor é quase sempre menor. Bom, lendo este romance, você certamente mudará, se possuir, essa opinião.   

  

Comentários

Boa noite. Bom artigo para figurar no blog/site do escritor. Tomarei a liberdade de citar o seu artigo e parte de um outro, sobre Os Cus de Judas, com os devidos créditos no nosso espaço, que já conta com dezenas de opiniões, críticas e recensões. Espero que não se oponha; se for o caso, por favor informe-nos para alaptla@gmail.com.

O nosso site é www.ala.pt.la

Obrigado.

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