Ler a Odisseia (Parte IV)

Por Pedro Fernandes

Herbert Draper, Ulisses e as Sereias.


Como determinadas leituras vão esclarecendo detalhes de um texto aparentemente tão simples quanto a Odisseia! Entendam-me, não estou aqui servindo de advogado do Diabo ao dizer de uma simplicidade do texto homérico, mas estou me guiando aqui pelo princípio cunhado pelo escritor português António Lobo Antunes, que atribui à forma de narrar o elemento mais significativo na composição do edifício do texto narrativo. Já outro português, José Saramago, terá dito a certa altura que 90% dos grandes textos literários são linguagem.

As aventuras condicionadas a Ulisses tem sua origem no meio popular. E o seu itinerário, apesar do distanciamento oferecido pelo narrador – diferentemente de romances modernos em que o narrador promove uma verdadeira imersão no interior psíquico da personagem, na Odisseia, o narrador põe-se como mero relator das peripécias do herói – é capaz de nos levar a conhecer um tanto do perfil pessoal de Ulisses a ponto de entendê-lo como revelador de determinados traços humanos comuns e essenciais aos perfis pessoais na realidade imediata.

E parece que essa aproximação oferece para o leitor uma relação orgânica entre a interioridade e a exterioridade textual. Ulisses tem muito de nós quando se vê impelido da vontade de lançar-se ao desconhecido. Mesmo sabendo que no Olimpo se passa um cabedal de decisões divinas e que Palas Antena estará ao longo desse percurso ajudando o herói a não esvanecer no seu ideário e obter o sucesso que obtém com a empreitada, o ato de desafiar o superior é um ato que se confunde muito com as decisões individuais que tomamos na curva de cada momento de nossas vidas. Ao sabermos que Posêidon, logo no início da viagem de Ulisses, se mantém contrário à sua decisão e, por isso lhe destrói a embarcação, sabemos também que o herói homérico irá construir uma viagem que não apenas restringe-se a um retorno para aquilo que lhe é sua propriedade, mas é também uma fuga do sujeito do poder mítico dos deuses e o ato de desafiá-lo em detrimento de um desejo próprio de construção do seu destino. E por que não pensar na astúcia, característica predominante em toda Odisseia e ver nela um tanto da nossa própria astúcia em driblar determinadas situações embaraçosas e obtermos o êxito naquilo que buscamos?

Não custa relembrar aqui dois famosos episódios do texto homérico. Ao chegar ao reino dos feácios, Ulisses se põe a contar suas peripécias desde quando teve a decisão de se lançar ao mar para o seu retorno à Ítaca. No Canto 10, está a astúcia de salvar-se de Circe, feiticeira chegada à mania de que todos estejam à seu serviço e que transformara metade dos da sua tripulação em porcos. Evidente que o herói não terá tomado partido sem os conselhos de Hermes – a figura de alguém que aconselhe estará nessa e nas outras decisões –, mas destaquemos, ele, nem nesse e nem nos outros casos, não se acomoda, mesmo diante do perigo iminente que o tempo inteiro lhe ocorre; quer, a todo custo, um êxito que dê para si a certeza de seu poder frente ao misterioso. E, o segundo episódio, dá-se no Canto 12, quando o herói relata como ele e seus homens escaparam ao canto das sereias. Este episódio, aliás, servirá aqui como exemplo também da exacerbada curiosidade que ronda toda a epopeia. O sentimento pelo desconhecido e a ação de nele lançar-se está intimamente ligado com uma certa curiosidade inerente ao homem. Como estamos em território onde o mito confunde-se com a epopeia, a curiosidade de Ulisses é aquela mesma que leva Pandora abrir a caixa para apossar-se do desconhecido.

Já que aqui chegamos, vejo a curiosidade como o elemento inclusive que sustém o leitor diante do texto homérico. Além de as movências de Ulisses revelar-nos determinados traços que o une aos homens e ao mundo externo e, por isso suas aventuras, por mais estapafúrdias que sejam, são preenchidas de conteúdo a ponto de terem feito e ainda fazerem sentido para o homem contemporâneo, é a curiosidade leitora que nos faz, mesmo sabendo que no fim o herói irá se dá bem, que nos leva à leitura integral dos cantos; é para sabermos como Ulisses reage às forças naturais, superiores e, logo, maiores do que ele, o que nos faz da Odisseia um texto de uma profundidade significativa. 


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