“Escrever é uma revolução”
Salman Rushdie, o autor de Os Versos Satânicos, livro e autor censurados em 1989. |
No dia 6 de maio passado Salman Rushdie encerrou o PEN World
Voices Festival de Nova Iorque com uma fala sobre o dramaturgo Arthur Miller. E
falou sobre a censura. Os escritores estão dispostos a falar sobre editores e
críticos, sobre quanto ganham, sobre fofocas de outros escritores, sobre
política, sobre amor e inclusive sobre literatura, mas nunca sobre a censura. Discutem
sobre a criação sem notar que a censura é a anticriação, a energia negativa. Não há que
ficar calado sobre isso. Diante do texto de Rushdie (que pode ser lido integralmente em The New Yorker, em inglês, aqui), o escritor Iván Thays, que escreve para o blog do jornal El País, Vano Oficio, redigiu um amplo comentário (aqui) a partir do qual faço livre tradução e acrescento pequenos detalhes de leitor.
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Poucos escritores têm a autoridade moral para falar de
censura como Salman Rushdie. Todos recordamos como o seu romance Os Versos
Satânicos foi perseguido, preso por uma fatwa ditada pelo aiatolá iraniano Jomeiní, em fevereiro de 1989. A acusação era de que o escritor havia
insultado a figura divina de Mohamed, pelo fato de transformá-lo em personagem
do seu romance, e de heresia contra o Islã, por declarar que já não acreditava
na religião. A condenação por ambos os crimes foi a pena de morte. Mas uma
recompensa de três milhões de dólares, em seguida dobrada para seis milhões,
resolveu a situação e Rushdie passou a viver escondido e acompanhado pela
polícia britânica; e isso durante anos. Muitas pessoas vinculadas ao livro foram presas,
esfaqueadas, baleadas e até assassinadas. Quase dez anos depois de viver escondido
do mundo, em 1998, o governo iraniano declarou que não perseguiria o escritor mesmo não podendo retirar a fatwa porque o único capaz de fazê-la seria o próprio
aiatolá que a promulgou, e este já havia morrido anos atrás. Agora, Rushdie anda sem maiores
problemas mesmo sempre existindo a possibilidade de algum fundamentalista
executar a condenação. Na verdade, no início deste ano deixou de ir ao festival
literário mais importante da Índia, em Jaipur, diante da possibilidade de que
assassinos de aluguel haviam sido contratados para matá-lo.
Salman Rushdie menciona em seus textos vários casos de
escritores perseguidos pela censura: desde Ovídio até Federico García Lorca, passando
pelo russo Mandelstam. Também mencionou livros censurados como Lolita, O amante de Lady Chatterley, Trópico de câncer. À lista eu acresceria ainda O
evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago, censurado pelo governo
português, em 1992. Na realidade, afirma, as razões para censurar um livro
podem ser tão subjetivas e disparatadas que as mesmas podem recair contra autores
como Kurt Vonnegut ou J. K. Rowling, a autora de Harry Potter acusada de
diabólica por extremistas cristãos.
Às causas políticas, morais ou religiosas mencionadas por Rushdie há que somar outras que, de maneira mais sutil, mas com igual
contundência, atuam como entes censores na atualidade. A primeira causa é o
mercado. Como diz La civilización del espectáculo, de Mario Vargas Llosa (livro recém-lançado e ainda sem tradução no Brasil), a
publicidade tem substituído a crítica e o mercado é quem dita a norma. Nada se
pode publicar se não houver sido aprovado antes pelo mercado. Nenhuma editora,
livraria ou agente literário pode sobreviver se não alcançar uma equação equilibrada
entre autores que o mercado exige e autores que lhe dão prestígio. Preencher as
mesas de novidades e as páginas culturais, afundar no esquecimento as obras que
não participam do espetáculo e minar estas pelo disparate dos autores Best-Sellers
são algumas das regras. A lei geral é a frivolidade e para ela tudo aponta. Mesmo
os livros que não são fáceis ou superficiais se não incluídos nesse complexo, o
mercado tem sabido adaptá-los a suas regras e tudo se frivoliza.
Outro fator de censura é o nacionalismo. Como acontecia com
os comissários stalinistas – aqueles que nunca deixaram publicar justamente Vida
e destino, de Vassili Grossman (ainda sem tradução no Brasil, pelo que andei escavando na web) – o nacionalismo cria uma exigência nos
escritores: mostrar uma realidade positiva, não provocar a dúvida ou o
questionamento, dar vivas à pátria e seus protagonistas contemporâneos (escritores,
artistas, chefes, desportistas, o que seja). Em poucas palavras: não ser um desmancha-prazeres.
Quando em 2010 se outorgou o Prêmio Nacional de Chile a Isabel Allende, seus
defensores sublinharam que a escritora havia “posto no mapa” literário o Chile. Não se
discutia a qualidade de suas obras, e muito menos em comparação com a de outros
autores propostos para o prêmio. Os críticos “negativos” de Isabel Allende eram invejosos,
mal-agradecidos ou antipatriotas. Não se pode criticar a nenhum personagem
sobre o qual repousa a autoestima nacional. Recordamos que há um ano se passou,
na Feira do Livro de Buenos Aires, em que o recém-premiado com o Nobel, Mario
Vargas Llosa, não inaugurou a feira porque “insultou” Cristina Kirchner ao
criticar seu governo. Não é isso censura? Se se mantém essa ideia de patriotagem
que obriga a todos a apoiar cegamente a causa nacional e se soma a ela a
mentalidade positiva dos empresários embrutecidos por cursos de coaching,
prontamente teremos comissários de um novo stalinismo: aquele que só aceita aos
autores que conseguem triunfos internacionais, mais além até do que sua qualidade
literária, e cujas obras logrem posicionar o país como um lugar de ganhadores.
Como disse Salman Rushdie em sua intervenção: “A arte não é
entretenimento. Quando a arte é muito boa, é uma revolução”. E nenhuma revolução
se consegue seguindo ao ritmo de um discurso hegemônico, a um slogan patriótico
ou às pretensões do mercado. Defender os livros da censura, como pede Rushdie,
implica não somente defender o direito de escrever, mas o direito de escrever
sobre ou contra o que qualquer um queira.
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