Quem é Judas?*



O beijo de Judas. Caravaggio


Nunca um beijo significou tanto para a humanidade. O de uma espécie de anjo caído cuja traição forja a glória de outro. Esse é Judas Iscariotes, personagem bíblico, para mal e para bem do cristianismo. Porque sua traição a Jesus por 30 moedas de prata, lhe converteu desde esse instante, num dos seres mais vilipendiados e amaldiçoados e logo numa das personagens mais interessantes, enigmáticas e novelescas da Bíblia, esse livro de leituras dispersas e fascinantes com grandes vozes narradoras ao serviço de sedutoras leituras literárias. Judas é uma personagem e uma peça essencial sem a qual não existiria a religião Católica, e cuja misteriosa vida tem sido explorada e recriada por alguns escritores ao longo de dois milênios.

Em O evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago, Judas não foge à figura da predestinação megalomaníaca de Deus e é, se não totalmente inocentado, elevado da sua categoria existencial de má pessoa. Olhando por esse ângulo não duvidamos da leitura empreendida pelo narrador saramaguiano. Afinal, a morte de Jesus não foi algo também predestinado? Logo, tudo aquilo que conspirasse para o desfecho do caso, deve ter suas parcelas de totalidade reduzidas. 

Também o escritor Jorge Luis Borges em “Tres versiones de Judas” busca como numa investigação decifrar a personagem Judas, encerrada como “um mistério central da teologia”. Assim, o narrador borgiano apresenta-nos De Quincey que especula sobre o fato de Judas entregar Jesus Cristo “para forçá-lo a declarar sua divindade e acender uma grande rebelião contra o jugo de Roma”. Daí, então, apresenta-se a mesma especulação sugerida em Saramago: “A traição de Judas não foi casual; foi sim algo preestabelecido que tem seu lugar misterioso no trajetória da redenção.” “El verbo, cuando fue hecho carne, pasó de la ubicuidad al espacio, de la eternidad a la historia, de la dicha sin limites a la mutacón y a la muerte; para corresponder a tal sacrificio, era necesario que un hombre, en represetación de todos los hombres, hiciera un sacrificio condigno. . Judas Iscariote fue ese hombre. Judas, único entre los apóstole, intuyó la secreta divinidad y el terrible propósito. El Verbo se había rebajado a mortal; Judas, discípulo del Verbo, podía rebajarse a delator y a ser huésped del fuego que no se apaga”.

As teorias e explicações que buscam decifrar o mistério continuam até encontrar uma como: “Imputar seu crime à cobiça está resignado ao sentido mais torpe. Nils Runeberg propõe um sentido contrário: um hiperbólico e até ilimitado ascetismo. O asceta, para maior glória de Deus, torna-se vil e mortifica a carne; Judas fez o mesmo com o espírito. Renunciou à honra, ao bem, à paz, ao reino dos céus, como outros, menos heroicamente, ao prazer. Premeditou com lucidez suas terríveis culpas.”

O grande momento da leitura borgiana chega quando escreve: “O argumento geral é complexo, se bem que a conclusão é monstruosa. Deus, argumenta Nils Runeberg, se rebaixou a ser homem para a redenção do gênero humano.” As discussões seguem até que diz: “Deus se fez totalmente homem, mas homem para a infâmia, homem para a reprovação e o abismo. Para salvarmos, podia eleger qualquer dos destinos que tramam a complexa rede da história; podia ser Alejandro ou Pitágoras ou Rurik ou Jesus; elegeu um ínfimo destino: foi Judas.”

Já pelo desfecho do conto, quando os teólogos desdenharam essa versão de Judas-Deus, o narrador borgiano diz: “Runeber intuiu nesse indiferença ecumênica quase uma milagrosa confirmação. Deus ordenava essa indiferença; Deus não queria que se propagasse pela terra seu terrível segredo”.

Eis aí o poder da Literatura: o de questionar o estabelecido como verdade absoluta e propor novas leituras do mundo. Leituras, diga-se, mais condizentes com o mundo.

Notas

* O blog Papeles Perdidos está com uma série magistral sobre o Novo Testamento e Literatura. É daí que parte a postagem agora publica. Boa parte do texto é vertido, diretamente, por conta própria, de “La deuda con Judas”, de Winston Marique Sabogal.

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