Ler a Odisseia (Parte I)
Por Pedro Fernandes
Odisseia de Homero, Turner. |
Devo retornar à questão primeira que postei em Letras
in.verso e re.verso quando dei início à leitura da Odisseia, de Homero. Daniel
Mendelsohn em recente entrevista ao The Browser responde à questão posta
dizendo: “Quando eu chegar a minha velhice, a resposta para isso é que os
clássicos são apenas bons.” Vou na contramão de Mendelsohn para dizer que, devo
ainda está longe da velhice se pensar na idade que tenho hoje, mas que,
voltando agora, já prestes a fechar a leitura do livro de Homero para dizer
isso: os clássicos são bons. E é, sem falsa modéstia, os únicos que ainda
conseguem ajudar a esse leitor que venho construindo desde que me colocava
diante da leitura da Bíblia à volta dos meus catorze anos.
Repete-se lendo a Odisseia o que vivi lendo Dom Quixote ou Grande sertão: veredas, para ficar apenas em dois exemplos. Quanto à leitura da Bíblia aos catorze, fui precoce, então.
A Bíblia é, juntamente com a Odisseia ou a Ilíada os textos bases do cânone
ocidental. E, poderão me perguntar, mas a leitura do livro sagrado foi
compreensível a você nessa idade? Ao que direi, boa parte sim, outra boa parte
não, mas aqueles que se dizem estudar a Bíblia até hoje não conseguiram
entendê-la e fazem dela, na maioria das vezes, estapafúrdias interpretações,
eu, estou melhor que eles, considero a Bíblia, não um texto sagrado, mas
canônico para a literatura, assim como são os outros livros antigos.
Aproveito para dizer que é o trato do enforme linguístico o
que dá a esses textos antigos uma áurea que me atrai; trocando em miúdos,
aquilo que é barreira para alguns leitores, é o meu atrativo para sua leitura.
Evidentemente que, quando a li a Bíblia eu não tinha a maturidade que hoje
tenho para afirmativas do tipo e, logo, não fui lendo os vários livros que a
compõem com esse olhar. Era muito mais por divertimento.
O trato linguístico é singular primeiro porque ele é a fonte
da qual nasce todo o trabalho com a linguagem, característica superior quando
se fala em literatura enquanto arte. Isto é, o texto clássico não é apenas
primordial do ponto de vista temático ou do enforme do enredo ou construção do
texto, mas a própria conformação linguística como substrato literário tem aí
sua base e leva-nos a entender, por exemplo, em que instante ou lugar hoje nos
encontramos.
Fora esse aspecto meramente induzido pela minha formação em
Letras e, logo, distante dos que não se enquadrarem nesse grupo, os clássicos
parecem ser necessário porque dizem muito de nós mesmos e de nossa natureza
humana; e como esta parece não mudar nunca, visto que, as mesmas inquietações
perante a questões sobre a existência, o amor, a morte etc., lá estão
atualíssimas a ponto de ser-nos primordial também na compreensão de nós
enquanto humanidade. Substancialmente, então, textos como a Odisseia sempre nos
vão iluminar quanto a nossa natureza e ação humana.
Vou recortar aqui tão somente o ato de Ulisses em regressar a sua Ítaca sem o roteiro predestinado. Esse ato é significativo na história da
humanidade porque marca um enfretamento do homem contra as suas próprias
criações, os deuses. Quando se pensa que todos os terrenos teriam
predestinações divinas de um determinado deus e logo estavam reduzidos ao gesto
amador de ser o que lhes foi destino, Ulisses toma suas rédeas e se lança numa
viagem que gestará no âmago dos próprios deuses o respeito por sua atitude e
uma força (até então inexplicável) para que sua empreitada dê certo.
Evidentemente, que o triunfo ainda será dos deuses pela as ajudas concedidas ao
longo do itinerário errante da personagem. Mas, o ato, este representa e muito
a inversão de papéis – a inauguração do homem-deus. E isso não diz de nossos
embates pessoais com o Criador? E não temos sempre a tentação irresistível de
mexer com aquilo que se diz ou que colocamos superior a nós ou nos impõe modelos autoritários de
conduta? Uns mais, outros menos. E Ulisses pertence ao primeiro grupo.
Desse
modo entenderemos não o óbvio, isto é, de que a Odisseia é um texto no qual as
pessoas estão sempre a serviço dos deuses, para entender que acontece também o
seu contrário, os deuses por vezes atuam como facilitadores das ações que já estão impressas
nos heróis. Ulisses, pelo ato assumido da errância, faz as coisas
acontecerem, sob custódia dos deuses, mas pelo tipo de pessoa que ele é e os
deuses exercem-se, desse ponto, como o elemento do acaso. E, agora, novamente pergunto: somos
ou não somos todos descendentes da ideia de predestinação ou crentes na
qualidade do eventual como parte enformante da nossa existência?
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