Espelho, espelho meu, de Tarsem Singh
Por Pedro Fernandes
O que seria de Espelho, espelho meu sem a rainha má de Julia Roberts? |
Talvez esse filme sirva como exemplar para uma coisa: espantar tédios. E só. E se só, já terá servido e muito. A ideia é benquista: voltar a um clássico popular coligido pelos Irmãos Grimm. A história todos já conhecem, inclusive a fala de efeito da rainha má - Espelho, espelho meu, existe alguém mais bela do que eu? Mas, como todo grande conto de fadas dispõe de uma maleabilidade textual tão forte só justificável pelo fato de ter sua base na oralidade, Tarsem Singh capricha em algumas subversões e reinaugura o texto de 1812*. Essa reinauguração, sim, me é benquista. Agora, a história contada pelo ponto de vista da rainha má, brilhantemente interpretada por Julia Roberts (aliás, o que seria do filme sem a presença dela?), merecia ao menos um desfecho outro e não a bizarrice anticerebral aí apresentada. Mas, fiquemos por aqui e voltemos mais tarde para falar melhor disso.
Evidentemente que, com todas as subversões impetradas no enredo do conto conhecido, Espelho, espelho meu preserva a sua dorsal: uma menina que vive sob o crivo de uma madrasta cruel e invejosa até dá com sete anões no meio da floresta, casar-se com um príncipe e ter o de direito: o reino. As semelhanças, entretanto, param aqui. Branca de Neve assume no texto de Singh um papel de Robin Hood feminina ou espécie de mãe dos pobres depois que, às escondidas, deixa o castelo onde vive enclausurada e vai ter com o povo do reino entregue à tristeza e à miséria porque a rainha má, depois de enfeitiçar o rei que sustinha festa e alegria, só sabe fazer uso de um verbo - explorar. É com as altas e insistentes cobranças que ela mantém o luxo e a vaidade pessoal.
Aqui, a rainha má também não deixa de ter seu espelho, diante do qual se confessa diariamente. Mas, a forma como foi refigurado merece atenção. Tido como uma espécie de portal, ou mergulho nas águas do inconsciente - aquilo que temos de mais forte - o espelho não se reduz a um mero reflexo, mas a uma extensa galeria povoada de outros espelhos e o lugar tenebroso onde a rainha visita com certa frequência para seus trabalhos com a magia. Chamou-me atenção essa multiplicidade espelhar e o contato que a madrasta de Branca de Neve tem com ele, bem como a especificidade do espaço. No andar da narrativa, ficaremos sabendo que é da representação encenada aí que as coisas acontecem no mundo real. Destaque para as marionetes empunhadas pela rainha má e logo a apresentação de bonecos gigantes de madeira para os anões. Estamos diante de um canal entre o imaginado e o existido na narrativa.
Chega ao palácio, depois de caça aventura, o príncipe de Valência. Antes, dois outros elementos importantes no enforme do filme: um, a reaparição da floresta encantada transportada do conto da Chapeuzinho Vermelho; outro, o encontro do príncipe com a chapeuzinho amarelo. É no trajeto de fuga do palácio para a cidade que Branca de Neve - sugestivamente de capa amarela - dá com o príncipe e seu amigo presos numa armadilha depois de lutar com um bando de saqueadores, que são ninguém menos que os sete anões, aqui, todos munidos de potentes pernas de pau infláveis.
O filme se beneficia da imaginação dos contos de fadas e abusa das possibilidades cênicas. Temos a impressão de que ora estamos diante de uma peça de teatro, ora de um musical pelo surrealismo dos espaços e o deslocamento das personagens em cena. Isso também engrandece Espelho, espelho meu. Mas, finda aí. A necessidade pedagógica de que o bem vence mal e de que para ser do bem tem, inclusive, de ser patético e insosso, perpassa todo o filme, seja na própria expressão da Branca de Neve, seja na do príncipe bobão, seja quando a magia é desfeita e a rainha má vencida. Aliás, o desfecho desse filme, para voltar ao início do que vínhamos falando, é um caldo adocicado de lugares-comuns em que até as subversões aí invocadas ficam obscurecidas: por exemplo, a de ser a princesa e não o príncipe a beijar o enfeitiçado a fim de desfazer o feitiço.
Mas, Singh firma-se aqui como o mestre do péssimo desfecho. Tudo porque, quebrada a magia e o rei voltando a seu estágio normal, o palácio corre a celebrar o casamento real entre Branca de Neve e o príncipe de Valência. Aparece na festa a rainha má entregue à carcomida imagem de uma velha misteriosa a oferecer uma maçã envenenada. Branca de Neve, ao receber a maçã, reconhece a madrasta, parte a fruta e lhe oferece, no exato instante em que a voz do narrador - a própria rainha má - toma para si o fio da narrativa e tergiversa a destruição do mal em detrimento definitivo do bem. Qualquer um que tenha uma dose de imaginação entenderá onde que o fio narrativo deveria ter sido cortado.
É aguardar agora o Branca de neve e o caçador, que tem previsão de chegar no meio ano, para ver a "desgraça" maior que irão aprontar dessa vez.
* Outra data para a compilação dos contos dos irmãos Grimm é a díspar 1822.
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