Aproximações a Wisława Szymborska
Por Pedro Fernandes
Produz-se
incessantemente muitos filmes biográficos sobre grandes estudiosos e grandes
artistas. A tarefa dos diretores ambiciosos é representar de maneira crível o
processo criativo, que como resultado teve importantes descobertas científicas
ou a criação das mais poderosas obras de arte. É possível mostrar com algum
sucesso o trabalho de alguns cientistas: um laboratório, diversos instrumentos,
mecanismos postos em movimento são certamente capazes de manter tensa a atenção
da plateia. Além disso, existem os frequentes momentos de incerteza, será que o
experimento repetido pela milésima vez apenas com mínimas modificações irá
chegar ao resultado esperado? Também podem ser espetaculares filmes sobre
pintores, nos quais pode-se reconstruir todas as fases envolvidas no nascimento
de uma obra, dos primeiros traços às últimas pinceladas. Filmes sobre
compositores enchem-se com os primeiros compassos, audíveis para seus
criadores, até a forma madura do trabalho que espalha-se pelos instrumentos.
Tudo isso é uma sequência de esboços ingênuos e não fala nada sobre o estranho
estado espiritual popularmente conhecido como inspiração, mas ao menos é algo
para se assistir e mesmo ouvir.
O pior é com
os poetas. Seu trabalho é desesperadoramente não fotogênico. A pessoa senta-se
à mesa ou deita-se no sofá olhando fixamente para a parede ou para o teto, de
tempos em tempos escreve sete versos, riscando um dali a quinze minutos, e
passa-se mais uma hora durante a qual nada acontece… Qual espectador aguentaria
ver algo assim?
Falei sobre
inspiração. Quando lhes perguntam “o que ela é” ou se “ela é”, os poetas quase
sempre respondem evasivamente. Não é por nunca terem sentido a benesse desse
impulso interior. A causa é outra. Não é fácil explicar aquilo que nós
mesmos não entendemos.
(Wisława
Szymborska, fragmento do Discurso perante a Real Academia Sueca quando da
recepção do Prêmio Nobel de Literatura)¹
***
A primeira
vez que ouvi falar sobre a poeta polonesa foi por ocasião de um desses eventos
acadêmicos dos quais sempre participo anualmente. Era 2008 ou 2009. E sua voz me veio através de um
poema sobre as torres gêmeas lido por um dos congressistas.² Seu nome ficou anotado erradamente num caderno e, desde então, sendo para mim o melhor
texto que conheço sobre o dia quando o século XXI começou para todos os devidos
efeitos, como bem definiu o poeta português João Ricardo Lopes numa de suas
entradas para o seu blog pessoal.
Hoje,
retorno à poesia de Wisława Szymborska para compor esta brevíssima crônica depois de passar por alguns
dos poemas recentemente publicados no Brasil em livro e algumas leituras dos vários perfis ou apreciações da sua, para redizer algumas palavras informativas mas ainda em sinal de alguma homenagem para uma das grandes poetas do século XX que veio à
morte no início do último fevereiro. De uma geração bastante prolífica na literatura da Polônia, a poeta foi a quarta no se país a vencer o
Nobel de Literatura, em 1996.³
Filha de políticos do centro-oeste da Polônia,
Szymborska foi, por mudança da família, para Torún, em 1924 e depois, cinco
anos mais tarde, para Cracóvia, cidade situada às margens do Vístula, no sul polonês, onde viveu toda sua vida. Ter vivido todo esse tempo num lugar tacanho
aos olhos do mundo não fez da sua poesia uma obra tímida e reservada.
Ainda que não houvesse ganhado o Prêmio Nobel, sua obra certamente correria o mundo devido sua maneira de tocar o cotidiano de maneira despretensiosa mas invulgar, livre mas rigorosa na linguagem.
Wisława Szymborska também não foi escritora de uma obra grandes proporções; os números orbitam entre 250
a 330 poemas, Muitos circularam pelo Brasil desde 1996 em jornais e revistas até a publicação pela Companhia das Letras da antologia Poemas traduzida e
organizada por Regina Przybycien, em 2011. Desde então, sua obra parece que fixou um lugar seguro entre os leitores brasileiros, um feito curioso se pensarmos dois fatores negativos preponderantes: o grupo de interessados por literatura e o ainda mais restrito que guardam predileção pela poesia.
Regina Przybycien aponta alguma resposta no prefácio que compôs para a antologia referida. “Embora os seus temas sejam sérios, até sombrios, o tom dos poemas não é. A seriedade das questões colocadas pelos poemas é contrabalançada pelo humor e pela ironia, que colocam o eu lírico na posição de observador distanciado. Neste aspecto, o poeta brasileiro que mais se lhe assemelha é, parece-me, Carlos Drummond de Andrade. Também nele o recurso à ironia é uma forma de conter a densidade dramática dos poemas. A ironia desempenha um papel fundamental para solapar a importância que se dá ao mundo e, sobretudo, a si mesmo.” Seria esse o motivo do interesse brasileiro por sua poesia, sendo o poeta mineiro um dos nomes mais conhecidos e quistos entre nós? Vai saber.
Uma visita à biografia de Szymborska ainda por escrever, por mais que tenha repetido que sua vida estava na obra que compôs, mesmo não sendo sua poética incrustada no vício da autoconfissão, descobrimos que a ainda jovem ia bem nos estudos primários até a eclosão da Segunda Guerra Mundial. No período,
não abandonou as atividades de estudante, mas era coisa que se fazia só e em segredo; em 1943, para evitar de ser
deportada para a Alemanha nazista, foi trabalhar nas estradas de ferro. É por
essa época que começou a escrever seus primeiros poemas.
Bastou dois anos para continuar seus estudos, agora em Língua e Literatura polonesa na Universidade
Jagellonica, mais tarde mudaria para Sociologia e não concluiria o curso por
dificuldades financeiras. Da pequena vida universitária, ela começou a se envolver com artistas do grupo de
vanguarda Inaczej, conhecendo Czesław Miłosz, que muito a influenciaria. Nesse
mesmo ano, publica seu primeiro poema “Szukam słowa”, traduzido
para o português como “Eu procuro a palavra”.
Em 1949,
teria seu primeiro livro publicado, mas foi impedida pela censura. Durante esse período,
a poeta trabalhava como secretaria de um revista bissemanal e como ilustradora
no mesmo periódico. Notadamente, percebemos que sua obra se constrói como uma árdua peleja, característica inerentemente (por destino
ou causa circunstancial) do próprio gênero poético.
Seu primeiro
livro só será publicado, então em 1952. Dois anos mais tarde, lançou o segundo
volume de poesia. Esses primeiros livros vieram bastante influenciados pela
ideologia oficial do regime socialista, o qual Szymborska apoiou até 1966, ainda que não tenha sido uma militante pública. Nem poderia ser diferente: na ditadura, qualquer posição pode significar a vida ou a morte de um cidadão. E a poeta precisou, antes, estabelecer uma sólida rede de apoios para os passos seguintes que se afirmava com o progressivo afastamento do epicentro do partido; por exemplo, em
1957, a convite de Jerzy Giedroyc colabora para o Kultura, um jornal
dissidente. E esses dois primeiros livros foram os que a poeta chegou a renegá-los desde o período em que passou a lutar abertamente pela liberdade dos países que
viviam sob o regime da União Soviética.
Depois de Por isso vivemos (1952) e Perguntas feitas a mim mesma (1954), vieram Chamando por Yeti (1957), Sól (1962), Muito divertido (1967), Todo caso (1972), Um grande número (1976), Gente na ponte (1987), Fim e começo (1993), Instante (2002), Dois pontos (2005) e Aqui (2009). E além dos livros de poesia, outros vieram a partir dos textos que figurou com frequência na imprensa em seu país, como a crônica e a crítica literária. Entre 1953 e 1981, por exemplo, atuou na Życie Literackie comentando livros ou colaborando como conselheira respondendo jovens escritores que buscavam um lugar ao sol nesta revista.
“A
prática dos poemas de Wisława Szymborska está na perfeição da
palavra-objeto, na palavra-imagem primorosamente esculpida – allegro ma
non troppo, como um de seus poemas se chama. Mas uma escuridão que nunca é
diretamente tocada se faz perceptível, como o sangue que circula sob a pele.
Para Szymborska, como muitos poetas poloneses contemporâneos, o ponto de
partida é a experiência de uma catástrofe, o chão desmoronando sobre ela, o
completo colapso de uma crença. No lugar dela as condições humanas irrompem com
sua brilhante agitação inacessível, com suas rotinas e sua mesquinhez, com suas
lágrimas e seus gracejos, com sua ternura. Essas condições exigem uma linguagem
particular, uma linguagem que ponha as coisas em relação, uma linguagem que
começa metodicamente do zero. O caminho da linguagem passa pela negação – o
pré-requisito para poder construir o novo é construir do nada. Nesse ponto um
jogo de interpretação começa, a maravilhosa dramaturgia do mundo.” – assim
se pronunciava o discurso que a anunciou a poeta como vencedora do Prêmio Nobel
de Literatura.
É uma figura de obra notável, que encontrou fora da política, que lia como a condenação da humanidade, uma maneira autêntica de ser e estar no mundo, fazendo da compreensão dessa condição matéria essencial da sua poesia.
Notas:
1. No site Meia
Palavra é possível ler na íntegra o discurso de Wisława Szymborska.
Foi de lá que recolhi as notas para escrita desse post. Luciano R. M. fez
um belíssimo trabalho de tradução de todo material para aquele site.
2. No blog do caderno-revista 7faces é possível ler o poema que mencionei no
início da post e outros poemas de Wisława Szymborska.
3. Os outros três foram Henryk Sienkiewicz (1905), Władysław Reymont (1924) e Czesław Miłosz (1980).
Comentários