Rubem Fonseca, meus desencantos
Por Pedro Fernandes
A primeira vez que li alguma coisa de Rubem Fonseca foi ainda na Graduação em Letras. Era o livro de contos Secreções, excreções e desatinos. Nada conseguiu me seduzir. A linguagem propositalmente coloca à serviço do escritor para o seu deleite com o que se torna fatalmente inverossímil. Uma radicalização, assim, na sua máxima potência. Disseram-se, já não vez, que essa minha porta foi a pior de se entrar na literatura do escritor mineiro. Talvez seja verdade. Não fui eu quem disse. Mas, talvez não. Sou humilde para pensar que, em matéria de arte, tudo se resume a certa imaturidade do leitor. Embora resida, ao que parece, no adolescente a força do encanto pelo que Rubem Fonseca escreve.
Outra verdade é que entrar por um mau livro na vida literária de qualquer que seja o escritor pode ser uma faca de dois gumes: ou nos intrigamos e procuramos ver se outras ruindades literárias formam sua prática ou, no sentido oposto da intriga, abandonamos de vez porque de livros ruins basta um e o universo literário é vasto para continuarmos explorando com coisas melhores. No caso de Rubem Fonseca, tem se mantido a segunda possibilidade; meu desdém por sua obra guarda meia década e ele continua a ser o nome que nunca penso nas próximas leituras, embora sua legião de leitores se amplie ao ponto de novos escritores do seu nicho atuarem entre um vazio e outro da chegada de novos livros dele. Patrícia Melo, uma dos continuadores de Rubem, é outra: não consigo ler.
Duas formas mais previsíveis de se entrar na literatura de algum escritor: lendo-o ou lendo o que a crítica concebeu em relação à sua obra. Pelas duas vias a faca de dois gumes continua lá. Evidentemente que, pela forma segunda o distanciamento operado entre leitor e obra é maior e as chances de desconsideração de obras e escritores é bem maior, evidentemente. A crítica como todo território político tem seus preferidos e sustê-los no altar onde estão tem sido, em grande parte, bem sabemos, sua tarefa.
Cito um exemplo do que me aconteceu com Jorge Amado: tem sido corrente nos cursos de Letras, cada vez mais, a entrada de leitores pela via da crítica e não da obra. O que é, já sabemos, um defeito dos graves. Todorov que o diga. Pois bem, conheci a literatura do escritor baiano pela crítica literária. E influenciado pela sua verdade desencantei-me antecipadamente com ele. E li, desencantado, Capitães da areia. Foi quase pela mesma época do meu toque com Rubem Fonseca. Outro desastre. Precisei levar alguns anos para retornar a esse romance e descobrir por conta própria a excelência e a grandiosidade da literatura amadiana. Fui inocente, na época, e a crítica venceu-me: vendeu-me uma imagem empobrecida de Jorge.
No caso de Rubem Fonseca, a coisa é mais complexa. Os seus leitores me falam bem e a crítica, por sua vez, não o despreza. No dizer de alguns críticos, foi ele quem inaugurou uma faceta nova na literatura brasileira ao ponto de situá-lo ao lado de Machado de Assis. Não o li, o leitor bem vê, mas tenho algum senso de direção. Entre Machado e Rubem a lista de outros grandes é muito longa. Perdoem os exagerados. Mas querem que eu esqueça Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Erico Verissimo, Jorge Amado, e tantos outros contemporâneos, para colocá-lo bem ao lado de Machado de Assis? Não tenho coragem.
E a coragem de reencontrá-lo permanece apagada como se Secreções, excreções e desatinos tivesse deixado qualquer coisa como uma repulsa pelo resto do trabalho. O escritor, bem sei, nada perde com isso. Tem já os seus louros. Bom, mas se chegou até aqui, é porque posso confessar outras coisas mais: esse realismo urbano que dizem ser a grande invenção do Rubem, não me atrai - e nem foi ele o criador, é, um continuador; pior do que isso, foi saber que ele apoiou e colaborou com a ditadura militar no Brasil.
Não sou muito afeito ao que José Saramago diz sobre as inegáveis influências entre a vida do autor e a obra. Fui educado para pensar por distanciamentos. Mas, esse traço inapagável na biografia do escritor me incomoda. E entendo porque ele fica sempre num canto esquecido no itinerário das próximas leituras; acontece o mesmo com Rachel de Queiroz, outra que era profunda admiradora desse vil modelo político; com Nelson Rodrigues. E nesse sentido essas relações, assim com o horror, muito me incomodam, a menos que o escritor repense, em algum momento, suas contradições. Mas isso Rubem ainda não fez, mesmo depois de ser censurado pelo próprio regime que ajudou a dar fôlego.
Mas, esse texto que expõe minhas limitações como leitor, não é um desabafo, nunca um desacato ao escritor. É talvez minha forma pública de desculpa por não fazer coro ao grande clã e uma tentativa de ao menos pensar mais nos meus desencantos para fazer chegar outra chance de encontrar Rubem Fonseca; momento que se conjuga, é bem verdade, com todo esse burburinho de próprio gogó (sempre silenciado) de Rubem quando teve em terras lusitanas como figura importante e premiada por lá. Em 2003 foi ele o ganhador do Prêmio Camões. Um dia pode chegar o fim do desencanto, por enquanto continuo com minhas limitadas condições.
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