Augusto dos Anjos

Por Pedro Fernandes






Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão — esta pantera —
Foi tua companheira inseparável!

Tenho comigo certa convicção de que estes versos — íntimos, atentem ao adjetivo — são, juntamente, com No meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho, de Carlos Drummond de Andrade, estão entre os mais conhecidos da poesia brasileira e entre os leitores que ainda tenham um fio parco de memória literária. 

São raros os poetas que ingressam assim na memória comum do seu povo. Os versos de Augusto dos Anjos assim o fizeram um poeta popular. A afirmativa talvez careça de ser explorada noutro momento que não este. Porque, para agora, o interesse é destacar alguns dados deste paraibano que produziu uma poesia desconforme em relação aos modelos dominantes no seu tempo, por uma linguagem que se apropria de um material vocabular inusual ao poema.

Se o reconhecimento popular de Augusto dos Anjos veio razoavelmente cedo, sua obra só alcançará o mesmo lugar entre a crítica especializada um tanto tardiamente. Não apenas porque essa mesma crítica sentia dificuldades de alocá-lo numa das gavetas da historiografia literária, mas porque a obra única deixada pelo paraibano, Eu, publicada numa tiragem por conta própria e ainda pelo dinheiro que o poeta conseguiu emprestado do irmão, se destaca pela linguagem incomum.

Anatol Rosenfeld escreveu que: Ao ler-se os poemas de Augusto dos Anjos, o que de imediato chama a atenção é naturalmente a sedução dir-se-ia erótica que sobre ele exercem os temos científicos. E, mais adiante: O termo especializado é, precisamente em consequência da sua artificialidade esotérica, um elemento alienígena que revela, através da sua alienação radical e sem concessões, a alienação encoberta da língua histórica que, em determinado momento, já não exprime a coisa e, atrasa, se alheia dos significados em plena revolução.

O uso dessa linguagem especializada, científica, não é propriamente algo que se faz novidade na poética do Eu. As noções poéticas vigentes — boa parte fixadas nos primeiros instantes de recusa do romantismo — primavam por uma poesia enraizada em certo cientificismo. Augusto radicaliza por recorrer não apenas às ideias, mas principalmente, ao vocabulário. Para Alberto da Costa e Silva, “Augusto dos anjos quis fazer poesia filosófica, a seguir as lições de seu mestre na Faculdade de Direito do Recife, Laurindo Leão, segundo as quais o conjunto das cousas que existem no mundo pode ser reduzido à unidade. Mas, “fez seus também o conceito hegeliano de ideia e o pessimismo schopenhaueriano. 

Li pela primeira vez os versos do soneto Versos íntimos recortados como epígrafe dessas notas ainda no Ensino Médio. Figuravam num livro didático que nunca estudei em sala. Neles, esse sintoma da linguagem complexa parece escamoteado e vigora um tema caro ao sentimento de finitude quase sempre ignorado pelo homem mas naturalmente ativo na consciência profusa de um adolescente. Ora, talvez aqui esteja o segredo da permanência de Augusto de Anjos: entre os leitores mais simples, a tradução dessa matéria comum a todos nós pela nossa natureza de enfrentamento à ordem do mundo.² E, entre os leitores especializados, o tratamento como a linguagem. 

Se Drummond foi um poeta que descobri já leitor, Augusto vem do principia. E guarda ainda outra singularidade que talvez seja a recorrente em todos os que o leem pela primeira vez: certo gosto pelo mórbido e sobretudo o mergulho que faz o poeta na parte mais escura do que somos para expor em matéria de poesia. A este leitor comum, mais que a língua fundada pelo poeta no interior da língua portuguesa, interessa o tom áspero, revoltado ou mesmo pessimista. Diria que sua linguagem transborda o sentido da palavra evocada e, consequentemente, do próprio poema.

Alfredo Bosi acredita que a popularidade do poeta nascido no Engenho Pau d'Arco deve-se ao caráter original, paradoxal, chocante mesmo, de sua linguagem, tecida de vocábulos esdrúxulos e animada de virulência pessimista sem igual nas nossas letras. O mesmo autor esclarece que essa qualidade não é a única. Trata-se de um poeta poderoso, que deve ser mensurado por um critério estético extremamente aberto que possa reconhecer, além do 'mau gosto' de um vocabulário rebuscado e científico, a dimensão cósmica e a angústia moral de sua poesia.

Essas qualidades servem a crítico para entender que a obra desse paraibano integra as linhas de um tardio romantismo e não as do parnasianismo ou do simbolismo, duas estéticas também vigentes quando se dedica a escrever seu único livro, Eu. Ora, é possível entendê-lo como uma convergência das feições literárias dominantes. Em Versos íntimos  por exemplo  apesar do título enunciar um tom de intimidade romântica, o que encontramos é o limite da razão amorosa, o ódio transmutado em coisas que despertam a repulsa do poeta, como o egoísmo. É Alfredo Bosi que assim pergunta: Se a vida (carne, sangue, instinto) não tem outro destino senão o de fabricar miasmas de morte qual poderia ser a concepção de amor ou do prazer em Augusto dos Anjos?

A educação de matriz schopenhaueriana responde essa interrogação, mas seria importante reconhecer outro traço essencial à poética de Augusto dos Anjos. Embora o que talvez esta deva aos parnasianos (seus primeiros detratores) seja o de aceitar os valores do artífice da linguagem e da técnica verbal e ignorar parcialmente certo enlevo clássico, resta pouco provável que não se beneficie dos critérios postulados pelos simbolistas.¹ O mesmo Alfredo Bosi aqui citado se coloca contrário a essa possibilidade ao acreditar que o poeta se filie melhor aos últimos lastros do romantismo.

Antonio Arnoni Prado diz que do estro lírico dos primeiros românticos, Augusto conservará apenas as primeiras impressões de uma rebeldia que ele acaba diluindo em face do estranhamento e da aversão pelas convenções ornamentais que a exteriorizavam.  

A matriz de sua poesia está em alguns nomes da poesia de língua portuguesa recorrente entre os jovens do seu tempo, tal como afirma Alberto da Costa e Silva: Antero de Quental, Cesário Verde, Cruz e Sousa (especialmente o de Broquéis) e António Nobre. Do primeiro, encontramos o panteísmo cientificista, o pessimismo, o evolucionismo, a aspiração ao Nirvana; o modo de apresentar o desfile dos seres na paisagem, o gosto pelo contraste entre o movimento dos homens e quietude das coisas, a ambição de traduzir o cotidiano em sentimento, o apego ao vocabulário do dia-a-dia, ou o jogo com o inesperado, o grotesco e o lirismo do feio são de Cesário Verde como foram de Charles Baudelaire. 

Esse verso interessado na decadência humana e no mundo invisível mas material que nos espera está mesmo em certo decadentismo do qual deriva a poesia de um Charles Baudelaire. O poeta francês interessa-se pela mobilidade terrena dos seres, o nosso poeta pela correspondência (nunca ajustada) entre este mundo e o que se move abaixo dos nossos pés ou ainda o soterrado nas camadas da nossa própria interioridade e que costumamos ignorar da mesma maneira. Essa dimensão encontra-se ainda noutra raiz, na que serviu à formação dos simbolistas francesas: Edgar Allan Poe. A tradução desse interior é dada de que outra maneira se não pela expressão do símbolo? Recordemos outro de seus poemas que eu tanto gosto: O morcegoE por aqui encerro essas notas com alguns asteriscos adiante, apenas para replicar mais alguns dados biográficos do poeta.

Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

“Vou mandar levantar outra parede…”
— Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!



***
Augusto dos Anjos nasceu em abril de 1884. Formou-se em Direito pela faculdade do Recife. Depois de se casar, em 1910, foi morar no Rio de Janeiro e quatro anos mais tarde em Minas Gerais. 

Nunca exerceu a profissão de advogado; seu negócio foi sempre com a literatura e escapou como professor e já nos  últimos meses de vida como diretor do Grupo Escolar Ribeiro Junqueira, em Leopoldina.

O seu único livro, Eu, foi publicado em 1912. Foi custeado pelo poeta e pelo irmão Odilon dos Anjos. A primeira edição teve tiragem de mil exemplares. O poeta morreu dois anos depois sem nunca saber, portanto, o sucesso que seu livro alcançaria.

Em 1920, o amigo do poeta Órris Soares organiza uma edição ampliada com o título de Eu (poesias completas), desde então, o livro definitivo para as mais de quarenta edições publicadas até o presente como Eu e outras poesias.

Notas
1 A referência às fontes clássicas, tal como observa Antonio Arnoni Prado, é marcada pelo olhar dessacralizador e sempre mobilizada em favor de complemento metafórico do pessimismo e da fatalidade: “(caso da crueldade de Tântalo que serve as carnes do próprio filho num festim no poema 'Vozes de um túmulo' ou do assombro de Perfeno ao arrancar os olhos de Dionisios em 'Gemidos de arte')”.

2 Alberto da Costa e Silva assinala que a grandeza de Augusto dos Anjos como poeta “não reside na sua filosofia cientificista nem no seu vocabulário; nem tampouco em haver feito da realidade quotidiana matéria de pensamento. Reside em ter-lhe enviado fundo a mão garganta adentro e puxado para fora, a fim de expô-las, as vísceras, e as fezes, e as cartilagens, e a bílis. Reside no haver concebido o mundo em constante morrer, até tornar-se 'a incógnita do pó'; em ter encontrado nas palavras de aparência menos poéticas — num desafio ao mau-gosto e ao grotesco, como, na pintura, já havia feito Goya, e fazia o expressionismo alemão — a matéria com que pôde opor epifania e desespero”.

Os textos citados
ANJOS, Augusto. Eu e outras poesias. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
BOSI, Alfredo. O pré-modernismo. 3 ed. São Paulo: Cultrix, 1969.
COSTA E SILVA, Alberto da. O quadrado amarelo. São Paulo: Imprensa Oficial, 2009.
ROSENFELD, Anatol. Texto/Contexto I. 5 ed. São Paulo: Perspectiva, 1996.




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