Por Eduardo Pitta
Vinham longe os tempos de
Trainspotting
e da hipocrisia dos consensos quando Judith Teixeira (1880-1959) disse a um
jornal de Lisboa que a morfina era a sua amante. Naquele tempo,
aquilo
era uma aberração. Marcello Caetano, então redactor da
Ordem Nova, chamou-lhe,
sem rodeios, desavergonhada. Quando publicou o primeiro livro,
Decadência
(1923), os alunos das escolas superiores, enquadrados na Liga de Acção dos
Estudantes de Lisboa, não estiveram pelos ajustes: “Vamos tomar aos nossos
ombros a tarefa de queimar a ferro em brasa, expondo-os à luz do sol, esses
cancros nauseabundos que têm medrado à custa da fraqueza de uns e da tolerância
incompreensível de outros.” Palavras de Pedro Teotónio Pereira. Os
cancros
eram três: a 2.ª edição (1922) de
Canções de António Botto;
Sodoma
Divinizada (1923) de Raul Leal; e o livro de estreia de Judith Teixeira. Um
módico de transgressão que a moral dominante não tolerou. No auge da
traquibérnia, Pessoa saiu, no seu fatinho exageradamente cintado, em defesa dos
amigos machos. Ficou célebre o
Aviso Por Causa da Moral (1923),
subscrito por Álvaro de Campos: “Bolas para a gente ter que aturar isto! Ó
meninos:
estudem, divirtam-se e calem-se.
Estudem ciências, se estudam ciências; estudem artes, se estudam artes; estudem
letras, se estudam letras. Divirtam-se com mulheres, se gostam de mulheres;
divirtam-se de outra maneira, se preferem outra. Tudo está certo, porque não
passa do corpo de quem se diverte [...] Tudo o mais é uma grande maçada para
quem está presente por acaso. E a sociedade em que nascemos é o lugar onde mais
por acaso estamos presentes.”
Mas, de Judith Teixeira —
colaboradora, como ele, da
Contemporânea —, nem uma palavra. Aliás: em
carta a Adriano Del Valle, poeta andaluz, dirá que “tudo isso, de Verlaine aos
futuristas, passou na noite, quase sem sombra [...] Uma reserva: quando trato
do caso-trânsito dos episódicos, penso nos maiores; mal penso no António Botto,
que não tem lugar entre eles, e não penso, de todo, na Judith Teixeira, que não
tem lugar, abstracta e absolutamente falando.” Na mesma carta, diz que os
Motivos
de Beleza (1924), de Botto, “não prestam para nada [e que] como amigo,
prefiro esquecer que essa autocalúnia se publicou.” Sem comentários. À margem
desse jogo de interesses corporativos, preocupada com “a necessidade de criar
ritmos novos, de quebrar a rotina dos processos”, Judith interroga-se: “Que
rumor imenso, / que tragédia contas / em cada cor? / Que grãos de incenso, /
queimas tu, em cada Alvor?” E, com a publicação de
Nua (1926), fecha o
ciclo poético: “Sobre a nudez moça do teu corpo, / dois cisnes erectos /
quedam-se cismando em brancas estesias, / e na seda roxa / do meu leito, / em
rúbidos clarões, / nascem, maceradas, / as orquídeas vermelhas / das minhas
sensações!... / / És linda assim: toda nua, / no minuto doce / em que me trazes
/ a clara oferta do teu corpo / e reclamas firmemente / a minha posse!...” É o
ano da revolução do 28 de Maio. Apesar da censura prévia, ainda aparece
De
Mim, conferência em que a autora se explica sobre a Vida, a Estética e a
Moral: “Desta minha alta concepção dos processos morais da existência, desta
minha singular lealdade de
afirmar; nasceu, pois, o desacordo entre mim
e a
Maioria”.
No ano seguinte, no número
inaugural da Presença, e numa altura em que estava publicado o conjunto
da obra que agora encontramos reunido em Poemas, Régio não fez a coisa
por menos: “todos os livros de Judith Teixeira não valem uma canção escolhida
de António Botto.” É muita execução junta para não causar estranheza.
Judith Teixeira, natural de Viseu,
tinha 43 anos quando publicou o primeiro livro, 47 quando abandonou a
literatura, e 79 quando morreu. É autora de uma obra breve — que inclui as
novelas reunidas em Satânia, 1927 — mas que acabaria por sobreviver-lhe
largamente. E, como Sena lembrou um dia, “o facto de um poeta se sobreviver
(silenciando ou não reafirmando o que antes realizara) o não exclui da história
literária.” Sabe-se que a ditadura rasurou. Também se sabe que a democracia
consagrou o direito à diferença, embora uns sejam mais diferentes do que
outros. Será por reserva politicamente correcta que o feminismo
português nunca reparou em Judith Teixeira? Este conjunto de factos e razões é
irrelevante? Não é. Enquanto mulher, Judith Teixeira foi vítima dos ataques
mais soezes. A preconceituosa sociedade portuguesa do seu tempo — republicana,
jacobina e pré-fascista — segregou-a sem contemplações. O que espanta é o
silêncio dos intelectuais. A excepção foi Aquilino Ribeiro: “Esta censura que
apreendeu o livro da sr.a D. Judith Teixeira, que é uma poetisa de
valor [...] é vincadamente odiosa.” Indiferente à polémica, a autora de Castelo
de Sombras (1923) tem ânimo para editar e dirigir um magazine mensal, Europa,
de que se publicaram três números em 1925. Entre os seus colaboradores
encontram-se os nomes mais relevantes do tempo, de Almada a Florbela, de
Aquilino a Mário Eloy.
A poesia de Judith Teixeira
reflete o cosmopolitismo europeu dos twenties, no seu assumido elitismo,
gosto da nevrose estética, erotismo de tonalidade difusa (só a misoginia dos
detractores poderia explicar o labeu de sáfica que os versos apenas traduzem
por indução), o hedonismo decadentista que marcou a época, certa pose de
morbidez e lascívia, simpatia vanguardista e mesmo, por vezes, um halo de
tragédia: “Anda-se a rir, a rir dentro de mim, / com as lívidas faces
desbotadas / um estranho palhaço de cetim, / rasgando em dor meu peito às
gargalhadas! [...] espreitando as figuras malsinadas / que se não vestem nunca
de arlequim, / mas que andam pela vida disfarçadas [...] E quando desce à
triste moradia, / vem mais louco e soberbo de ironia / na irrisão dum
sarcástico desprezo!” E de uma esplêndida ironia que tenha sido um poeta
conotado com a direita tradicionalista, António Manuel Couto Viana, a chamar a
atenção para a poesia de Judith Teixeira, ao lembrar quanto as suas poesias são
“merecedoras de melhor sorte do que o silêncio, a ignorância a que têm estado
votadas”.
Este volume resgata uma dívida de
décadas. No momento em que passam 70 anos sobre a publicação de Nua, a
homenagem é perfeita. São devidos créditos a Luis Manuel Gaspar, inspirado
autor da capa e das vinhetas, que moveu este mundo e o outro para encontrar as
edições originais e reunir os dados biobibliográficos indispensáveis a uma edição
desta natureza; bem como a Maria Jorge, que pesquisou e organizou, de parceria
com Gaspar, todo esse vasto material. Vítor Silva Tavares foi o corajoso
editor. Judith Teixeira apreciaria decerto ver-se incluída num catálogo como o
da & etc. E preciso dizer mais?
* Reprodução cedida pelo autor. O
texto encontra-se em Aula de poesia (Lisboa: Quetzal, 2010).
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