O silêncio da água, de José Saramago
Por Pedro Fernandes
Como
aquele A maior flor do mundo, que foi, inicialmente uma crônica e depois
virou um conto infantil, organiza-se, agora O silêncio da água, um conto
infantil oriundo de um fragmento do romance As pequenas memórias.
Antecipo, entretanto, que essa caracterização de “infantil” é um tanto quanto
discutível por natureza, mas mais ainda em José Saramago, que considera algumas
separações um tanto quanto caducas e pensa nas crianças como sujeitos com
capacidades tanto quanto de adultas para lerem sobre determinados assuntos e
determinadas histórias em determinados formatos. E mais: que os adultos padecem
de uma necessidade de ler tais histórias, para, lendo-as, possam se reencontrar
com a criança que um dia foram e, nesse movimento, se redescobrirem, inclusive,
enquanto adultos.
E O
silêncio da água está aí como prova disso. Nasce de um romance em que o
exercício da escrita – nesse caso, memorialístico – é o de uma volta à infância
para reencontrar a pessoa que o escritor tem se tornado. A resposta final é que
os instantes da infância não serviram apenas para uma modelagem daquilo que o
adulto se tornou, mas em muitas vezes, é ainda o próprio adulto.
O instante
captado d’As pequenas memórias é o de um episódio que se dá à beira do rio
Almonda – rio que atravessa o povoado de Azinhaga, lugar onde o menino e o
adolescente José passou boa parte de sua vida, pelo menos, o período de férias,
que era o período em que deixava Lisboa e ia ter com os avós. Um dos
passatempos infantis do José – que existiram os passatempos adultos que eram os
de limpar o curral dos porcos, servir-lhes comida, carregar água; tarefas de
ajudar os avós no cuidado da terra e na pequena criação de suínos – era o da
pescaria.
E é uma das pescarias que o livro narra o que se pôs aqui em O silêncio da
água. Em cena está um narrador infantil contando o fato e mesmo no instante em
que a história poderia ganhar contornos do fabuloso ou ares daquelas histórias
de pescador dos adultos, o de dar com um peixe de força maior que a do
pescador, por exemplo, e depois de tudo vencê-lo, não, o que se lê é uma certa
vitória do peixe sobre o menino: é que, ao beliscar a isca, a linha se parte e
o pescado foge. O menino ainda volta em casa, refaz o instrumento de pesca, na
vã esperança de tornar a pegar o peixe e só se depara com o instante do
silêncio da água.
Nota-se aí
que o resultado da transmutação de gênero – romance-conto – é uma rica fábula,
que difere, entretanto, das fábulas comuns. Tudo porque o seu sentido
pedagógico não é revelado – como se dá também n’A maior flor do mundo –
mas põe a criança às voltas com a imaginação a fim de que possa reter esse
instante de iluminação filosófica peculiar na fábula comum.
A rasura do texto é que seu enredo não oferece nenhuma complexidade, nenhum
grande conflito à busca de solução, nenhuma briga entre bem e mal, mas um
simples divertimento de uma criança que se põe a uma tarefa já nem um pouco
corriqueira às crianças de hoje ou às de seu tempo, nascidas no centro urbano e
distantes, portanto, desse universo rural, que é por natureza, fabular, tanto
quanto os paraísos mágicos das histórias infantis.
Reside aí, outro elemento peculiar nesse conto, o de apresentar a importância
que o contato com esse universo outro – totalmente diverso do ambiente urbano –
foi importante na formação do José escritor; principalmente, quando enxergamos
aí, o instante de contemplação da personagem no desfecho do conto: “Aquele
barbo tinha vivido muito, devia ser, pela força, uma besta corpulenta, mas de
certeza não morreria de velho, alguém o pescou num outro dia qualquer. De uma
maneira ou outra, porém, com o meu anzol enganchado nas guelras, tinha a marca,
era meu.”
O instante
de volta à casa dos avós para pegar novos apetrechos de pesca e o instante do
encontro com o silêncio da água constitui outro instante que é o de iluminação
ou, para ser mais preciso ainda, de esperança num futuro. A constatação final
de que o peixe era, sim, seu, porque tinha sua marca, é a constatação de que
toda espera não é vã: o tempo tem-lhe resposta para tudo. Aqui reside um dos
viés possíveis para que possamos ler uma “moral da história” para esse conto.
Por fim,
devo comentar da riqueza plástica que é as ilustrações compostas pelo espanhol
Manuel Estrada para essa obra. A estética das imagens composta dos mais ricos
processos de construção desse tipo de arte dialoga em direto com a história
narrada. Os traços simples e a constante necessidade de fundir a imagem a
escrita como se num jogo a imagem nascesse da palavra, ou seu contrário,
colocam uma via muita estreita entre o que se conta no enredo escrito e o que
se conta no enredo imagético.
Ligações a esta post
>>> Neste breve catálogo, uma amostra das ilustrações de Manuel Estrada para O silêncio da água.
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