Almada Negreiros
“A vocação de Almada foi a de dizer-se, de
afirmar-se, de passar a vida a ser-se Almada.”"
— Eduardo Lourenço
“A Raça Portuguesa não precisa de reabilitar-se, como pretendem os tradicionalistas desprevenidos; precisa é de nascer pro século que vive a Terra.”
— Almada Negreiros
Este é um poeta que a crítica o tem como a figura mais polêmica do Modernismo
português e assim o foi nas mais diferentes manifestações artísticas – na prosa, no teatro, na poesia e nas artes plásticas. Mas, na definição de Carlos
Queirós “em tudo, e sobretudo, poeta. Ele próprio, humanamente, poeta”. Sua inquietude
ou rebeldia não são gratuitas.
Almada, além do olhar aguçado do poeta forma-se poeta
de um tempo também de inquietudes e de rebeldias. Marca-se como o artista que via
na arte o espaço – não apenas para as transgressões estéticas — mas para “estetização”
de questões sociais mais complexas.
Álvaro Cardoso Gomes o lê como ilha — “Eu
tenho visto olhos!/ Mas nenhuns que me vissem/ nenhuns para quem eu fosse/ um
achado existir/ para quem eu lhes acertasse lá/ na ideia/ olhos como agulhas de/
despertar/ como íman de atrair-me vivo/ olhos para mim!” — num mundo regido
pelo senso prático e pelo frio racionalismo, pelo seu tom avesso ao
convencional, ao mau-gosto e à doença da civilidade impetrada pelo nascimento
da burguesia.
E claro, tudo isso está em poemas como “A cena do ódio”, escrito como
espécie de resposta ao “Ode triunfal”, de Álvaro de Campos, está nos vários
manifestos que, de certo, sacudiram os rumos da vanguarda futurista e do
próprio Modernismo em Portugal e se amplifica para outras frentes do seu vasto universo criativo que começou a se formar na segunda década do século XX primeiramente como artista plástico.
Nascido em 7 de abril de 1893 na Fazenda Saudade,
em São Tomé, Almada Negreiros viveu em Paris na mesma década em que Sá-Carneiro; depois, em Madri, onde
trabalhou como artista plástico entre 1927 e 1932 e, só então, em Lisboa, na “pátria onde Camões morreu de fome e onde todos enchem a barriga de Camões”. Para muitos críticos sua vivência com as atividades picturais finda por interferir na imagem pública do escritor, esta que só será evidenciada mais atentamente muito tardiamente.
Integra, a partir
de 1915 a frente do grupo de Orpheu, ocasião que o leva conviver com Fernando Pessoa, e mais tarde noutras revistas como Contemporânea e Portugal Futurista. Em termos literários, no primeiro projeto publica um conjunto de micro-narrativas com o título de “Frisos”; no segundo, “Rondel do Alentejo”, uma passagem da conferência “La révolution individuelle”, o conto “O diamante” e o poema “O menino d'olhos gigante”.
Já no único número de Portugal Futurista sua presença é ampla: com Ruy Coelho e José Pacheco assina o texto de abertura, Os bailados russos em Lisboa”, sozinho assina Saltimbancos. Contrastes simultâneos”, “Mima-Fatáxa sinfonia cosmopolita e apologia do triângulo feminino” e uma parte do tríptico de manifestos futuristas, o “Ultimatum futurista às gerações portuguesas do século XX”. Parte desses textos terá contribuído fortemente para, tão logo publicada a revista, os mecanismos de censura entrassem em ação e todo material fosse apreendido.
Dos manifestos que escreveu, o Anti-Dantas é talvez o mais conhecido. Com a já conhecida linguagem agressiva e exuberante, ataca-se a figura de Júlio Dantas transformando-o em síntese de uma mentalidade tacanha e academicista que mereciam de todos os interessados em compor nova arte a recusa demolidora.
e é por isso que eu tenho a concepção do Infinito”
“Tu não sabes, meu bruto, que nós vivemos tão pouco
que ficamos sempre a meio-caminho do Desejo”
— Almada Negreiros
“Nada há mais moral nem de maior valentia que a autoridade pessoal. Se há no mundo postos ambicionados, só um há de direito para cada um: a sua autoridade pessoa.”
— Almada Negreiros
Jorge de Sena pontua que o Almada Negreiros se faz de um “abstracionismo intelectualizado, esquematismo geometrizante, visionário do racionalismo delirante, artificialismo esteticista de arlequins, por um lado, opõem-se, diversamente, a sentimentalismo irónico, realismo do pormenor descritivo ou linguístico, primitivismo de um retorno à infância e à ingenuidade, ou sistemática valorização da espontaneidade estética (que não é psicologística ou do 'humano')”. Ou seja, este é um dos autores do modernismo português mais completos e marcado pelas verdadeiras diretrizes do desassossego, no interesse contínuo de oferecer uma inovação no universo artístico de seu país.
É fato que todo o radicalismo juvenil atravessará uma estagnação ou uma crise sobretudo a partir dos anos 1930, quando suas criações parecem retroceder a um instante pré-moderno, mas, nunca esteve interessado em pactuar com as ideologias políticas dominantes, apesar do Estado Novo ter se apropriado de sua matéria. No curso do retorno da suas expressões artísticas, a literatura também desvanece com o passar dos anos.
Fernando Guimarães destaca três fases da poesia de Almada Negreiros: uma marcada pela ruptura, outra por um “regresso a certas matrizes da reflexão antiga” e outra de matriz existencial. A primeira delas, certamente a mais interessante, constitui-se não apenas pelo tratamento de negação das diretrizes que conformam o ecossistema burguês, como se empenha na destituição das expressões enraizadas do realismo e naturalismo. E esse tratamento terá sido constante nas três fases criativas.
Além dos textos já citados, vale ainda recordar os seguintes títulos de sua autoria: A engomadeira e K4 o quadrado azul (composto com Amadeo de Souza-Cardoso), de 1917; Antes de começar, peça escrita dois anos depois das novelas citadas antes mas só publicada em 1956; O Kágado, texto saído na revista ABC em 1921; a peça Pierrot e Arlequim saída na revista Athena em 1924; o romance Nome de guerra, de 1938; a peça Deseja-se mulher, em 1959.
Desses títulos, Nome de guerra terá sido o livro que recebeu, para bem e para mal, a melhor atenção da crítica. António Alçada Baptista diz: “Em plenos anos vinte, Almada Negreiros, com o Nome de Guerra, exprime, em literatura, uma proposta nova que desloca o problema amoroso da relação homem-mulher para a relação da pessoa consigo própria, o que significa, por outras palavras, que a maior parte dos problemas, que julgávamos ter de resolver através do trama amoroso, têm de ser resolvidos connosco.”
O poeta, em junho de 1970, dá entrada no Hospital
S. Luís dos Franceses e morre no dia 15, no mesmo quarto onde morreu Fernando
Pessoa, um dos últimos dos que primeiro fomentaram o modernismo em Portugal. Não concluiu, para o amigo, o projeto de ilustrar o único livro que publicou em vida, Mensagem; deixou apenas três desenhos publicados no Diário de Lisboa. Do modernismo português foi quem mais durou: viu o desvanecimento do ímpeto juvenil modernista e o aparecimento da segunda vaga modernista, esta que como Orpheu nunca passou.
Ligações a esta post:
>>> No blog do caderno-revista 7faces é possível ler poemas de Almada Negreiros, inclusive a versão de “A cena do ódio” que seria publicada na edição número 3 da revista Orpheu.
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