O palhaço, de Selton Mello
Primeiro devo dizer que fui ao cinema com os dois
pés (de desconfiança) atrás. A recente experiência de Selton Mello para a TV
como faz-tudo no seriado desastroso A
mulher invisível não é, diga-se de passagem, bom tom para ir ver um filme
no qual ele, também faz-tudo, possa ter um desempenho considerável. Ledo
engano. A princípio o filme não quer nos convencer porque nos deixa muito sem
saber a que veio. Talvez por isso seja um filme que tem seu brilho: vai nos
convencendo – aos poucos – pelo riso e pela emoção, duas pontas distintas e aí
tão bem interligadas.
O filme possui um enredo simples, no entanto,
muito bem trabalhado. Gira em torno da vivência de um palhaço, o Pangaré,
filho do dono do circo, o Circo Esperança. Nome sugestivo esse para um circo
que está – como todos os circos – à beira da falência. Aliás, Benjamim, é esse o nome da personagem Pangaré, sequer
está convencido de qual a razão ou se é mesmo para ser palhaço, como o pai, a
sua profissão, afinal, fora dos picadeiros, nem tudo são alegrias e o ritmo da
vida é outro: é burocrático e caro para um sujeito que sequer possui um
registro de identidade ou um lugar fixo de morada. Aliás, a necessidade de uma
identidade e o comodismo (se é que posso assim de dizer) de Benjamim em obter o
documento são – sem dúvidas – outra forte metáfora para a própria formação subjetiva
sua em entender-se e/ou assumir-se na profissão. Se assim chego a essa
antecipada conclusão é porque talvez a metáfora maior que justifica o enredo de
O palhaço é a busca por. Quer outro exemplo? O encanto
obsessivo que Benjamim nutre pela aquisição de um ventilador – linha intrigante
que vai despertando no telespectador a nascente pergunta: mas afinal o quer
esse palhaço com essa mania de pensar num ventilador. Seria para elaboração de
um número que viesse chamar todo público e tirar o Esperança da lama? Não, não.
Chegamos ao final e não temos um motivo concreto do porquê da busca pelo
ventilador. Mas, claro está, que o ventilador figura com uma meta, o objeto de
busca, o elemento que está na outra ponta do trajeto a ser percorrido. A conquista
do elevador e da identidade são, pois elementos mais suficientes para reforçarem
o que venho dizendo ser este um filme metáfora para a busca.
Mas quero chamar atenção para outro fato que tem
a ver com a construção do enredo que é a oposição entre aquilo que se dá no
picadeiro e o fora dele. As figuras, no primeiro plano, são peculiares, no
traje, na maquiagem, nas piadas... fora desse plano, são outras: um tanto
tristes, melancólicas e, cada qual, com seus problemas particulares. É como se
toda magia do circo só figurasse no palco e fora dele todo encanto se perdesse
numa atmosfera incapaz de camuflar a vida real. Há um momento mesmo em que
Benjamim reflete sobre isso: o palhaço é o que faz todos rirem, mas quem faz o
palhaço dar risadas. É a rotina, a insatisfação, o esvaziamento – frutos desse
traço melancólico que colore o filme – a prova de fogo maior para os do fazer
circense. O picadeiro é tão somente um substrato que esconde histórias tão banais
com as contadas no palco, mas tão humanas como as dos que vão ao circo dar
risadas a fim de esquecer seus dramas. É uma áurea de ilusão que se constrói
dos dois lados, mas talvez, afete mais aqueles que no pensamento de Benjamim não
têm quem os faça rir. Benjamim, então assume, a figura do mais famoso palhaço
do cinema, vivido por Chaplin, a figura do palhaço trágico. Evidentemente que
aqui as cores são outras e se não chega a superar a figura do mestre maior
(seria impossível, à primeira vista), consegue manter níveis sofisticados o
suficiente para não deixar o filme cair numa monotonia.
A figura do Pangaré instaura uma ficção no interior da ficção. E se o que o
palhaço vive é uma ilusão, a ilusão parece ser então, melhor de ser vivida que
a realidade. Afinal, o estado de melancolia que comporta metade da trama é
marcado por um esvaziamento e um descolorido que não tem graça alguma. O vazio
que se forma nesse outro lado do filme se perde no vão das grandes imagens; imagens,
diga-se, tão repetidas, como se quiser nos dizer que a monotonia do real cansa
até o mais divertido dos palhaços, mesmo não sendo Benjamim-Pangaré o mais
divertido deles.
No fim, se este não é um filme que se diga
brilhante, porque pouco inova esteticamente, não dá para passar despercebido. É,
sim, uma grande surpresa do cinema nacional tão preso na comédia escracho ou
nas tramas que têm como figuras bandidos e tiras, que, sinceramente, não há mais
quem aguente. É um filme sensível, poético, escrito num tempo certo, bem ajustado,
de enredo enxuto, enfim, vale ser visto.
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