José Saramago, os livros do meu afeto
Por Pedro
Fernandes
A obra de
José Saramago, como a de todo grande escritor, não permite leitores de meios
termos. E quem se vê entre aqueles que logo se deixam seduzir pelo enredamento
das suas narrativas cheias de labirintos dificilmente conseguirá se restringir
a apenas um romance. Eu entrei nesse universo de complexas reentrâncias por uma
das portas que se constitui recorrência na sua prosa romanesca: o acaso. E depois,
nunca mais voltei a quem era antes; também nunca mais larguei.
Foi numa
tarde qualquer, há cinco anos, enquanto buscava por entre os labirintos de
livros na biblioteca da universidade minha próxima leitura ou o escritor que pudesse
me oferecer a centelha da curiosidade para me enredar pelos estudos literários,
que encontrei com José Saramago. Na última divisa de uma das estantes ao fundo
da biblioteca estava a edição de bolso publicada pela Companhia das Letras
nesse mesmo ano de O evangelho segundo Jesus Cristo. Na época, seu autor
era para mim um ilustre desconhecido. Claro que José Saramago era reconhecido
por muitos com o primeiro escritor de língua portuguesa a ganhar o Prêmio Nobel
de Literatura, claro que no Brasil sua obra era bastante lida ― veja
pela publicação de edições de bolso e edições com alta tiragem, as publicações, como
fiquei sabendo mais tarde, quase simultâneas entre Portugal e aqui, ou mesmo o lançamento mundial de A viagem do elefante feito neste país, e uma
biblioteca de uma pequena universidade no interior do país dispor de boa parte
de sua obra.
Ora, mas
nada disso sabia, nem me levou a desenvolver o interesse pela obra de José
Saramago. Foi o contato ao acaso e inocente com a longa descrição que abre o
romance que comecei a ler no dia seguinte ao empréstimo, a minha dificuldade em
encontrar a voz da narrativa, seu tom e sua condução, o que me levou a voltar
ao começo do livro várias vezes, ou depois a retomada de parágrafos cujo raciocínio
eu perdia ao longo da leitura pela maneira como não distinguia as fronteiras de
vozes do narrador e das personagens, foi o encanto com um universo todo em
expansão que me levou a decidir pelo interesse de descobrir quem era este
escritor, o que havia escrito além desse romance, o que diziam sobre ele entre
os estudos literários.
Depois
disso, li livro a livro, descompassadamente ― ora seguida, ora reiteradamente,
mas nunca espaçadamente ― toda sua obra conhecida. De maneira que, agora, na altura
quando finalizo um texto de maior fôlego sobre sua obra, a minha dissertação de
mestrado, quando se publica o que até então era um livro desconhecido, Claraboia,
e quando se repete para mim uma pergunta de sempre, qual o melhor livro de José
Saramago, tomei a liberdade de escrever essa modesta lista. Chamei
propositalmente de livros do meu afeto porque são aqueles ―
sem escala de proporção ― os que mais me levaram a compreender o mundo, a
humanidade e a própria literatura através de outras miradas; isto é, os que
mais me afetaram. Não é uma lista fácil. Entre o distanciamento devido do pesquisador
e a paixão desmedida do leitor guardo sempre muitas dúvidas sobre essa possibilidade
de apresentar ao leitor uma lista com o básico para entrar num rico mundo que é o oferecido pela literatura de José Saramago.
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O evangelho
segundo Jesus Cristo (1991). Não deixaria, obviamente, de começar pelo
ponto que deu origem ao meu envolvimento com a literatura de José Saramago. Sua
experiência aqui se integra a uma variedade de obras de excelência que ressignificam
a imagem dessa personagem histórica que continua a ser uma das mais importantes
da humanidade. E, como em todo imaginário artístico e literário, o escritor se vale
de uma desconstrução idealizada dessa personagem, substituindo, dentre outras
características, o valor sagrado pelo valor humanista de Jesus. É interessante
o descompasso assumido entre o título e o enredo. Se enuncia um evangelho
que é contado pelo personagem principal, mas, o evangelista em nenhum momento
cede o fio narrativo para Jesus. O que acompanhamos é o tradicional narrador
saramaguiano que tem uma vista onisciente das coisas e se enreda por entre as
sendas da narração para sentenciar qual os antigos autores dos evangelhos. A
vida do protagonista é recriada por um extenso trabalho imaginativo e
palimpsesto, ou seja, é este um texto escrito por sobre os textos sagrados no
intuito de rasurar, acrescentando o que os evangelhos deixaram de acrescentar,
repisando os seus conteúdos miraculosos e os ensinamentos, cujo resultado é,
simultaneamente, o mesmo Jesus das escrituras e outro Jesus, muito distante
desse modelo refeito pelo dogma do cristianismo.
O ano da
morte de Ricardo Reis (1984). Quando este livro foi publicado eu ainda não
havia nascido, este e boa parte da obra de José Saramago: o escritor se lança
nesse universo literário em 1947 com o romance rejeitado por ele durante muito
tempo Terra do pecado, e embora entre este livro e Levantado do chão
(1982), seu grande sucesso, tenha passado quase quatro décadas, durante todo
esse tempo o escritor foi um incansável com a palavra. Valeu a pena. O livro
recomendado é um dos indispensáveis em qualquer lista de grandes romances da
literatura universal; nele se reúnem todas as qualidades da literatura desse
escritor: imaginação, fabulação, enredamento, as doses certeiras de questionamento
da ordem vigente dos discursos e das verdades e o trabalho de fuxico com o
vasto universo literário que o antecede, sobretudo, a poesia de Fernando Pessoa
e seu heterônimo evidenciado no título. Há uma relação inusitada na base deste
romance que é o fato de José Saramago, um leitor que se fez às suas próprias
expensas de sujeito curioso, acreditar na existência palpável de um escritor chamado
Ricardo Reis; mais tarde, com o encanto desfeito, descobre que, depois da morte
do poeta de Mensagem esta era a única figura sobre a qual não se fizera
as notícias sobre sua morte. As duas emendas se restabelecem na verdade sobre a
qual não deixamos de duvidar quando lemos o romance.
Ensaio
sobre a cegueira (1995). Este deve ser, de todos os romances de José
Saramago, o mais conhecido. Embora o livro seguinte nesta lista tenha atingido
o ponto-limite de reconhecimento do escritor, pesa, a adaptação cinematográfica
realizada em 2008 por Fernando Meirelles. A dimensão planetária da imagem,
alcançada pelo mérito de um trabalho bem executado e distribuído, levaram a
obra do escritor português por mares nunca dantes navegados. Situado
entre um ensaio ― como o próprio título enuncia ― e uma distopia sobre a
sociedade moldada à imagem do poder capital, este romance é também universal e
uma poderosa parábola sobre o nosso destino. Um país qualquer é tomado por uma
epidemia que obriga a instauração de regime de quarentena nos moldes dos já
experimentados pela humanidade noutras épocas a fim de conter a disseminação da
cegueira branca. Seja pela ineficiência do Estado, seja pela incapacidade das
pessoas, o mal perde o controle e tudo entra para um caos que reduz todos à mais
primitiva das formas de vida, com indivíduos presos à barbárie e aos interesses
instintivos de sobrevivência. Mas não é esse acontecimento favorável a nenhum
tipo de transformação, tampouco é a cegueira a responsável exclusivamente
por essa nova ordem. Dificilmente um romance terá encontrado uma metáfora tão
poderosa para dizer sobre a invalidez do ideal de civilização que vimos
construindo como a maior e melhor das certezas. A partir deste romance,
Saramago chegou a pensar numa sociedade pós-cegueira em Ensaio sobre a
lucidez (2004), mas aqui sua atenção se dedica a perscrutar o sistema
político recorrente nas chamadas sociedades desenvolvidas ― a
democracia.
Memorial
do convento (1982). Este livro foi o que levou o escritor ao reconhecimento
fora do seu país. Integrado a um modelo de romance cuja origem remonta a Walter
Scott, José Saramago construiu com ele parte significativa de sua obra; neste
rol podemos inscrever os dois títulos que abrem esta lista com Levantado do
chão (1980), História do cerco de Lisboa (1989), A viagem do
elefante (2008) e Caim (2009). Dos livros desta lista, recomendaria
começar por este. É verdade que aqui o estilo de narrar inimitável ainda está
em formação, o que pode oferecer um grau de dificuldade a mais com a leitura,
mas a história proposta está muito próxima das recorrências romanescas: há um imbróglio
amoroso e um enredo centrado na ação ― para citar duas delas. A construção
do convento de Mafra durante o reinado de D. João V, mote para o romance, é
intercalada com a construção de objeto fabuloso, uma máquina de voar. Além do
histórico, Saramago bebe fartamente no realismo maravilhoso. É um desses raros romances
que atestam a maturidade de um escritor, seja pela proposição de um novo estilo
de narrar, seja pela maneira como se apropria dos recursos disponíveis para dar
forma à sua obra, seja ainda como oferece um questionamento irônico da história
oficial.
Manual de
pintura e caligrafia (1977). Dos romances escritos por José Saramago este é
o que mais se situa à parte no interior do universo constituído por essa forma.
É verdade que Terra do pecado e este que agora se publica, Claraboia,
são livros em que encontramos um escritor usando os mesmos protocolos comuns para
a organização da narrativa, mas é no Manual, cuja primeira edição foi designado
com o subtítulo de “Ensaio de romance” que encontramos toda pulsão de riqueza
criativa que se desenvolverá mais tarde. Nele acompanhamos um pintor de retratos
em pelo menos dupla crise ― criativa e da própria profissão ― que se descobre na arte da
palavra, como um cronista de viagens. Essa descoberta, em parte parecida com
processo escritural de Saramago, se conforma com outra: a de um novo instante
da história portuguesa em nascimento com o fim de um longo regime ditatorial. Alguém poderá
dizer que este não é um livro dos melhores do escritor, o que, obviamente, não é
de um todo verdade. É neste romance que se mostra um escritor com escolhas mais
ou menos determinadas e fortemente influenciado pelos modelos literários
vigentes, integrados mais no tratamento criativo que nas relações mais tarde
desenvolvidas pela sua obra. É um Saramago, ousado, diria, o que aqui encontramos.
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No fim, espero
com estas recomendações levá-los à curiosidade por encontrar estas e outras obras
de José Saramago. O escritor ficou reconhecido pelo trabalho com o romanesco,
mas escreveu em formas diversas: o conto, a crônica, a poesia e o teatro são algumas
delas. Nem tudo está publicado no Brasil, até agora, mas com paixão e muita perspicácia é
possível encontrar com os universos pouco conhecidos do escritor. Cada um oferecerá
a você uma experiência nova e outras oportunidades de olhar e ver o mundo.
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