Dois irmãos, de Milton Hatoum


Por Pedro Fernandes




Este não é o primeiro romance do escritor Milton Hatoum. O primeiro é Relato de um certo Oriente, publicado em 1989 e logo vencedor do Prêmio Jabuti de Melhor Romance daquele ano. Dois irmãos é o segundo e é tão premiado quanto o primeiro: mereceu outro Jabuti e já figura até o presente em mais de oito diferentes idiomas. É este romance minha porta de entrada pela literatura do autor. Já havia lido – numa das tantas idas às livrarias – alguns contos esparsos da antologia A cidade ilhada (Companhia das Letras, 2009) e, claro, como já notifiquei noutras ocasiões, alguns ensaios escritos pelo Hatoum para a extinta revista EntreLivros

Não precisa dizer – mas vou mesmo assim fazer isso – que este romance me fisgou ponta a ponta. E há algumas razões que devo citar nestas notas. Primeiro, e isso deve ser uma observação corriqueira entre os críticos, é que Hatoum não é, à princípio, influenciado por dois modismos literários contemporâneos: as narrativas psicológicas e os roteiros de violência explícita. Ao contrário disso, opta pela narrativa tradicional e persegue, ao que parece, a forma do grande romance, coisa que parece ter sido posto de lado também pelos romancistas brasileiros contemporâneos satisfeitos com os enredos curtos, complexos e atrevidos. 

Gosto de pensar, ao menos tendo por base este Dois irmãos que parece ele fazer cumprir a fabricação de um retrato perdido do Norte e de suas figuras para o resto do Brasil, assim como fizeram aqueles escritores do Romance de 1930 que apresentaram ao país o Nordeste ou como fez outros escritores daquela parte do país – estou pensando em escritas como a Dalcídio Jurandir, por exemplo. Embora o modo como o escritor amazonense faz isso é também outro. Hatoum não está preocupado em destilar um quadro de esquecimento, denúncia, abandono ou não sei mais o quê que os autores da década de ouro do romance brasileiro fizeram e, sim, aproxima-se do espaço mítico encenado por Jurandir. 

É também o romance de uma procura – são sujeitos à procura de si e de seu espaço, são sujeitos à procura de seu passado, em permanente confronto com eles e tudo operacionalizado por um elemento que tem sido outra grande constância na literatura contemporânea brasileira, a memória. Basta que se diga que o romance é um descortinar de lembranças; turvas, à primeira vista do leitor – devido ao oscilar entre uma narração em primeira e terceira pessoa – e mais claras, logo depois – quando o leitor descobre está diante de Nael, filho da órfã Domingas com um dos gêmeos e criada na família de Halim como agregada. Chamo atenção para essa personagem-narrador, porque é ela um ponto de vista interno e, ao mesmo tempo, externo aos fatos narrados, já que Nael não se prende apenas a um inventário biográfico que possa numa das muitas pontas de memórias deixadas no meio trama descobrir quem foi (é) seu pai e deixar de vez de ser o filho de um agregada, órfão de pai, como muitos filhos do Norte, nascidos em sua grande parte das relações fortuitas entre o homem branco colonizador e as índias. 

Dois irmãos pode ser lido como uma saga bem ao modo do que já fizeram outros brasileiros. Érico Veríssimo e Jorge Amado são dois deles. E mais próximo, Chico Buarque, é outro, com Leite derramado. E ainda mais próximo - no que se refere ao enredo – Esaú e Jacó, de Machado de Assis. Estão em cena os irmãos Yaqub e Omar, personagens centrais da trama, que tem seu foco no nascimento da família dos gêmeos dada com a chegada dos avós libaneses em Manaus. O auge e o declínio dessa família permeado pelo material histórico de formação daquela região do país e claro por aquele período que foi sombra para todo o Brasil – o regime militar.

Uma leitura descompromissada do romance me faz enformá-lo em duas palavras-chaves: é este uma narrativa em trânsito, marcada pela imagem do desenraizamento, povoado por sujeitos-rizoma, no melhor sentido deleuziano do termo. A começar por Halim, pai dos gêmeos, líbio casado com Zana. Depois se perpetua esse mover-se-para nos filhos, pelo menos em Yaqub e Omar – figuras em choque, impossíveis de conviver sob o mesmo teto, seja porque parecem carregar consigo a maldição dos irmãos gêmeos (a de ser subjetivamente um oposto ao outro e por isso mesmo querer sobrepor-se ao outro) e tudo isso marcado por uma divisão interna na própria família: é que Halim não esconde sua predileção por Yaqub assim como a mãe não esconde a predileção por Omar ou o Caçula, apelido este porque Omar foi o último a nascer e veio ao mundo – aparentemente – mais frágil que Yaqub e por isso mesmo criou-se sob todos os mimos possíveis de Zana. 

Dois irmãos é um romance escrito ainda não somente sobre o duplo – tema recorrente na literatura brasileira – seja na citada prosa de Machado de Assis, como de Clarice Lispector, de Caio Fernando Abreu, seja ainda na poesia de Manuel Bandeira, de Cecília Meirelles e de Carlos Drummond de Andrade, por exemplo; mas é um romance, que no mover-se-para, é escrito sobre o mito do duplo, recorrente no Gênesis bíblico e sobre o mito eterno retorno, afinal estão Yaqub e Omar o tempo inteiro em idas e vindas constantes nas relações entre irmãos e na geografia ampla recortada pelo narrador de Hatoum: Yaqub, depois de uma briga feia com o irmão vai primeiro para a Líbia, volta a Manaus, segue para São Paulo, onde faz carreira pessoal e profissional, e volta a Manaus em visita pelo menos duas vezes; Omar, vai a São Paulo, rouba o irmão e vai aos Estados Unidos, volta a Manaus e depois passa longo período distante de casa, desaparecido com uma contrabandista. 

Por fim, devo dizer que este é sim um romance que traz ao leitor uma parte incomum e ao mesmo tempo tão próxima das outras partes do Brasil. A relação de classes, a figura do agregado, entre outros, são elementos reiterados nesse romance que são comuns a todas as regiões do país e uma constante na literatura brasileira. Já a textura das coisas, das cores, as superfícies líquidas em que rio e terra se confundem, os cheiros, os sabores da gastronomia (elo cultural marcante em Dois irmãos), e por que não, a textura linguística – tão única – são os elementos incomuns de um Brasil por conhecer a muitos, ainda.

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