Afinal, quem são os bandidos?
Faz certo tempo que
tenho me afastado de falar de certas querelas políticas. Não sei a razão.
Talvez minha capacidade de se indignar esteja acabando e eu me transformando em
mais um em cima do muro. Aliás, está em cima do muro virou um estado permanente
no Brasil. Por aqui de tudo se faz. Nos pisoteiam até dá no coro. Esfolam.
Sangramos. E calados permanecemos. Como se tudo o que nos fazem fosse isso
mesmo o que tem de ser feito. Aquele comodismo cristão de que as coisas são o
que são porque Deus quer, se transformou em as coisas são o que são porque não
temos como mudar. Essa famigerada consciência de classes que criamos chegou por
aqui, como muitas das invenções que chegam do outro lado do Atlântico, com o
sentido deturpado. Aprendemos que existem duas classes – a dos que mandam e a
dos que obedecem; a dos que dizem como as coisas têm de ser e a dos que
concordam. Do lado de lá, Estado, Igreja e Mídia, juntos numa móia, com seus
discursos unilateralistas; do lado de cá, nós, Narcisos encantados conosco
mesmo, presos no mundo meu, no mundo que pouco importa o que se passa lá fora,
é com eles, não é comigo.
Vejo que mal maior
desse século é que aprendemos a nos reorganizar em comunidades – nas redes
sociais – e desaprendemos o real sentido de está em comunidade. Perdemos o
senso de que imersos num sistema, somos peças chaves dele, e se ele vai mal, é
porque a falta de manutenção nossa e não da cúpula dos do lado de lá. Vidrados que estamos nesse jogo de espelhos
que só reflete nossa imagem para nós mesmos, esquecemo-nos do sentido maior que
nos une, o sentido humano. Aprendemos com a velocidade dos bits a seguir feitos
cegos enfileirados tudo aquilo que os do lado de lá nos impõe e achar que mesmo
quando parecemos está certo, estamos apenas no parecer, porque quem tem razão
são eles, os do lado de lá.
Toda essa constatação é
para tratar de um caso que ganhou os jornais nos últimos dias e despertou em
mim a necessidade – de novo – em não me conformar com certos rumos que as
coisas tomam nesse país. E falo porque não há coisa pior do que se indignar
calado. Aliás, calado, há indignação? Falo da atitude covarde – não sei de quem
porque não quero apontar culpados, mas a atitude é, sim, covarde – dos
policiais em invadir e expulsar a fina força os estudantes acampados na
reitoria da Universidade de São Paulo. Não está em questão aqui o tratamento de
bandido dado aos estudantes. E está. Mas está, sobretudo, algo para além disso, a atitude (o gesto)
de invasão comandada pela instituição Polícia. As cenas apresentadas nos
telejornais ressuscitam na nossa cabeça aqueles tempos idos da Ditadura
Militar, período em que o direito ao protesto soava como ameaça a suposta moral
pública e os envolvidos eram arrastados para os porões das cadeias e lá muitos
desapareciam. A invasão da polícia fere, primeiro, o princípio de democracia,
segundo, o princípio de autonomia da instituição educacional do país. A atitude
foge em todas as direções do discurso propagado na mídia de que a contratação
da polícia como vigia ao campus da Universidade de São Paulo é mera forma de
zelar pela segurança pública da instituição. O que significa, depois de bater,
espancar e prender estudantes, zelar pela segurança pública da instituição? Aí
está uma pergunta dura de resposta. E por uma razão, é que a instituição
polícia se beneficia do discurso do zelo para instaurar o controle e
monitoração de uma ordem.
O que acontece aos estudantes da USP é um estágio que jamais imaginaríamos alcançar. É que a instituição perdeu o brio do laicismo (afinal não é dentro dos muros da UFRN, para vir cá para perto de nós, que pastores vêm rezar seus cultos de multidões?), o brio de instituição autônoma e democrática. As instituições de Ensino Superior hoje obedecem a uma ordem maior que ela própria, e essa ordem dá sinais aí, de que tem o poder e pode exercê-lo a qualquer custo.
E o caso da USP não se
finda aqui. Deve servir de fato para olharmos outras vias de controle
estabelecidas pelo os do lado de lá no Brasil e em derredor do mundo. Afinal,
pergunto, qual foi o protesto realizado mundo afora que não tenha resultado em
mortes de inocentes, prisão e tortura? A ordem é clara. Opôs-se aos do lado de lá,
manda bala. O que me põe medo é que a coisa agora atinge um território neutro
que até então era o espaço ideal para o motim e rebeldia sadias a título de se
pensar e repensar, fazer e refazer a ordem externa. Ou não foi nos centros
universitários onde se gerou todo histórico de lutas em prol da liberdade, da
democracia, da igualdade e da expressão. Por mais utópico que esses ideias
sejam, eles são os princípios norteadores para se pensar o real sentido dessa
comunidade humana a que chamamos de sociedade. E são ideais nascidos principalmente nesse território de formação pessoal. Romper com eles ou ameaçar a
eles é ameaçar nossa própria condição de pensarmos um jeito novo de fazer
comunidade. E foi isso o que fizeram esse grupo de polícias.
Comentários