Miacontear - O rio das Quatro Luzes
Por Pedro Fernandes
Antes de tudo convém dizer que “O rio das Quatro Luzes” se situa na linha limítrofe do afeto e do desafeto, dos silenciamentos e do diálogos. Tomando como epígrafe um provérbio moçambicano é esta talvez a mais moçambicana das histórias de O fio das missangas.
Nela se acomodam três distintas gerações - a um de velho que remonta os primórdios de África, cujos valores eram outros, a de um casal, filhos da geração desse velho, e um menino, a terceira geração, esta contemporânea, das infâncias cortadas.
Chamei de “a mais moçambicana das histórias” pelo fato de os valores suscitados pela primeira geração irem de encontro aos valores da última geração - já de traços culturais totalmente ocidentalizados.
“O rio das Quatro Luzes” possui o tom das lendas contadas para explicar o nascimento ou a existência de determinada coisa - no caso o nome para o rio que passa à frente da varanda da casa do narrador, rio este que não sei ser imaginário ou real, isto é, parte numa geografia do escritor. Não importa o caso. Mesmo real, terá passado por uma transmutação dos sentidos que finda em imaginário, como os muitos outros rios na literatura.
O conto narra o estranho desejo de um menino em querer, primeiro, que a morte logo lhe venha, segundo, que as idades avancem para que seja logo um adulto. O primeiro motivo, é que lhe encanta ver tanta gente a chorar por outra pessoa; o segundo motivo, mais próximo dos desejos comuns de toda criança, é que não adianta, pensa, viver a fase de criança se outros lhe tiram a infância.
Ora, não precisa muito esforço para ver que estamos diante de um estágio social de enclausuramento dos afetos, ou ainda o tempo dos diálogos cortados. E será o contato da criança com o avô que a levará estabelecer um novo itinerário a título de construir sua infância.
Diferentemente de quando em contato com os pais em que o diálogo finda com a ameaça, o avô aceita a voz do menino e penetra no seu universo fazendo-se igualmente criança. “E lhe contou os lugares secretos de sua infância, mostrou-lhe as grutas junto ao rio, perseguiram as borboletas, adivinharam pegadas de bichos.”
Numa sociedade em que ser criança tem se tornado sinônimo de espera e preparação para a vida adulta, Mia Couto vem recobrar a necessidade do resgate de determinados valores sobretudo dos afetos a fim de corrigir o próprio curso da morte. Afinal, aqui, não apenas a criança reencontra sua dimensão, como também o velho, igualmente desprezado por essa sociedade, reabilita-se em sua condição.
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