História do cerco de Lisboa, de José Saramago
Edição de bolso recém publicada pela Companhia das Letras para História do cerco de Lisboa |
De braços levantados, com a corda
que os ajudara a descer posta em redor do pescoço como sinal de sujeição e
obediência, caminharam para o arraial, ao mesmo tempo que davam altas vozes,
Baptismo, baptismo, acreditando na virtude salvadora duma palavra que até aí,
firmes na sua fé, haviam detestado. De longe, vendo aqueles mouros rendidos,
julgaram os portugueses que viessem negociar a própria rendição da cidade,
embora lhes parecesse raro que não tivessem aberto as portas para eles saírem
num obedecido ao protocolo militar prescrito para estas situações, e sobretudo,
aproximando-se mais os supostos emissários, tornava-se notório, pelo
esfarrapado e sujidade das roupas, que não se tratava de gente principal. Mas quando
finalmente foi compreendido o que eles pretendiam, não tem descrição o furor, a
sanha dementada dos soldados, baste dizer que em línguas, narizes e orelhas
cortadas foi ali um açougue, e, como se tanto fosse nada, com golpes, pancadas
e insultos os fizeram tornar aos muros, alguns, quem sabe, esperando sem
esperar um impossível perdão daqueles a quem haviam atraiçoado, mas foi um
triste caso, que todos acabaram ali mortos, apedrejados e crivados de setas
pelos próprios irmãos. Depois desta trafica aventura caiu sobre a cidade um
silêncio pesado, como se um luto mais profundo tivessem de purgar, talvez o
duma religião ofendida, talvez o insuportável remorso dos actos fraticidas, e
foi então que, rompendo as últimas barreiras da dignidade e do recato, a fome
se mostrou na cidade em sua mais obscena expressão, que menor obscenidade é a exibição
dos comportamentos íntimos do corpo do que ver extinguir-s esse corpo à míngua
de alimento sob o indiferente e irónico olhar de deuses que, tendo deixado de
guerrear uns contra os outros por serem imortais, se distraem do aborrecimento
eterno aplaudindo os que ganham e os que perdem, uns porque mataram, outros
porque morreram. Pela ordem inversa das idades, apagavam-se as vidas como
candeias exauridas, primeiro as crianças de colo que não encontravam uma só
gota de leite nos peitos murchos das mães e se desfaziam em podridões
interiores causadas por alimentos impróprios que em último recurso as queriam
fazer ingerir, depois as mais crescidas, a quem, para sobreviver, não bastava o
que os adultos tiravam à boca, e destes mais as mulheres do que os homens, que
elas privavam-se para que eles pudessem levar uma última energia à defesa dos
muros, ainda assim os velhos eram os que melhor resistiam, talvez graças à
pouca exigência dos corpos que por si mesmos se dispunham a entrar leves na
morte, para não sobrecarregarem a barca em que atravessarão o último rio. Já então
tinham desaparecido os gatos e cães, as ratazanas eram perseguidas até às
trevas fétidas onde as ervas até às raízes, a lembrança de uma ceia de cão ou
de gato equivalia ao sonho duma era de abundância, quando ainda as pessoas se
podiam oferecer o luxo de atirar fora os ossos mal esburgados. Nos monturos,
agora, buscavam-se restos que dessem para aproveitamento imediato ou para
transformar, por qualquer meio, em comida, e o ardor da busca era tal que os
quase nada encontravam o que pudesse aproveitar à sua indiscriminada
voracidade. Lisboa gemia de miséria, e era uma ironia grotesca e terrível
deverem os mouros celebrar o seu ramadão quando a fome tornara o jejum
impossível.
*
A extensa cena acima é de História do cerco de Lisboa, de José
Saramago. O cenário apocalíptico absorve o leitor para uma humanidade em
estágio terminal. Não sendo esse o primeiro, nem o último. Já disseram mesmo
que a história se é feita disso: de atos apocalípticos ensaiados pelo próprio
homem, que sente uma necessidade, de por ironia grotesca – para beneficiar-se
dos termos saramaguianos – testar seus próprios limites e não raras vezes pela
pior via possível.
A história da humanidade é esse mar de sangue, de forças
exauridas a todo custo por coisa alguma, é a intolerância. Como pano de fundo,
mas não apenas figurativo e sim diretamente ligado aos fatos está esse aparelho
que convencionamos chamar de religião. Já outras vezes Saramago tem nos
alertado sobre os seus males e seu perigo para a existência humana. Se por um
lado a religião tem o utópico interesse de conforto do espírito humano – esse que
é desassossego constante – por outro, a religião este como pivô ou epicentro
das maiores tragédias da humanidade. Funciona, pois esse aparelho ideológico,
como uma bomba relógio.
No caso de História do cerco de Lisboa, o fato histórico em questão é esse que
dá nome ao romance. Foi o período em que Lisboa esteve sob o domínio muçulmano.
E se a história oficial diz que foram os próprios mouros os que ajudaram Lisboa
se libertar do cerco, Saramago vem por em suspense essa tese e mostrar que a
coisa não foi tão romântica assim. Há um emaranhado de fatos por explorar e
isso vai sendo feito ao longo desse romance através da figura do revisor
Raimundo, que ao se deparar com o livro “História do cerco de Lisboa” para uma
revisão, sente-se inclinado a por um categórico “não” à afirmativa que
sustentava o fato oficial.
Não os mouros não ajudaram Lisboa a libertar-se do domínio
muçulmano. O “não” questionador, levará o revisor, por incentivo da sua chefe,
a escrever um romance, no qual a tese contestada pela história oficial se
confirme. É um romance, logo, de reconhecimento da escrita e de entendimento da
palavra como instância enunciativa e fundadora da realidade. O “não” categórico
que vai tomando corpo no correr do romance aponta para o próprio fazer
literário do romancista Saramago. Tem ele a função de questionar, de por em
xeque, ou como tanto o escritor português disse, desassossegar. Instaurar o
terreno outro. O terreno da possibilidade.
O resultado é isso que se
apresenta. Um romance sobre um romance. História
do cerco de Lisboa é por natureza, metalinguístico. É romance dobrado sobre
si, percorrendo seus próprios labirintos para ver-se como materialidade
palpável. Coroado por passagens de extrema e refinada poesia, assim como são todos
os romances saramaguianos, esse romance diz da condição humana, assim também
como todos os romances saramaguianos. Reveste-se do poder inquisitório da
palavra questionando a própria palavra e firma-se como um desejo de entender as
lacunas da história oficial e os modos de verdade instituídos pelo seu
discurso.
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