Vincere, de Marco Bellochio
Por Pedro Fernandes
Benito Mussolini (Filippo Timi) e Ida (Vittoria Mezzogiorno), estão arrebatadores em Vincere. |
O filme foi
posto na lista dos dez melhores filmes da década publicada pela especializada
revista Cahiers du cinèma. Fez sucesso em Cannes, mas não chegou a
convencer o júri do Oscar daquele ano: 2009. E o filme não chegou à lista
final. Não é novidade nenhuma. A Academia de Cinema já rejeitou, não uma, mas
muitas vezes, vários grandes filmes. E quando chego a dizer grande filme já
estou antecipando meu julgamento à película de Marco Bellochio, que tive
oportunidade de ver (atrasadamente) numa sessão cinecult. A trama, que apesar
de dar contas de um perfil biográfico, não segue uma ordem cronológica usa de
um artifício não-inovador mas bastante do comum da narrativa contemporânea. Seu
elaborador tem em mãos uma série de materiais e faz uso deles num processo de
montagem que à primeira vista parece desorganizado, mas o resultado final é um
todo harmônico. Como uma caixa de retratos, Vincere vai compondo-se ora
do texto ficcional (mas baseado em fatos reais: a da relação passageira de
Mussolini com uma mulher desconhecida da história oficial, Ida, que morreu na
luta por ser reconhecida a primeira mulher do Duce), ora do texto histórico (os
discursos do próprio Mussolini, os recortes de jornais, as chamadas nas rádios
italianas) ora do texto do próprio cinema, compondo, deste modo, um jogo de
linguagens que funda e sustém a própria ordem do texto principal.
Encontrei
diante das tintas fortes de sua fotografia, claro, preservadas as especificidades,
com imagens muito próximas daquele Saló ou 120 dias de Sodoma, que não
por acaso se constrói sobre um mesmo período da história italiana: esse da
Ditadura de Mussolini. Vincere, já disseram, tem o tom da grande ópera e
aí quero comentar, de imediato, da elaboração sonora do filme. Impecável. Um
enredo costurado a todo tempo pelo tom do drama operístico. A cena de Ida
pendurada no gradeado do manicômio jogando seus escritos tem uma sintonia tão
forte com o som que acompanha que o difícil é o telespectador não ir às
lágrimas.
E não por acaso
Bellochio usa do título de uma canção famosa do período fascista para dá nome a
seu trabalho. E o título assim como foi-nos apresentado, sem tradução para o
português, consegue trazer já a ideia de arrebatamento, que o que está a todo
tempo sustentando o enredo do filme. Estamos diante de uma mulher que amou
arrebatadoramente um homem e de um povo que aprendeu a se levar pelas
artimanhas de um garanhão sedutor. As cenas picantes entre Mussolini em início
de carreira política e Ida parecem recobrar que assim como Ida foi levada à
cama pela poder arrebatador do discurso do ditador o povo italiano também foi
levado pela lábia fascista. E no fim, ambos, pagaram um preço um tanto quanto
alto.
E já que estamos em território de discursos, diria
que ele, o discurso, é o grande sustentador do enredo elaborado em Vincere.
Está em questão um povo que se leva pela palavra de um ditador. E pergunto,
afinal, o que foram as ditaduras ao redor do mundo, senão castelos erguidos à
base dos discursos? A primeira parte é o discurso de Mussolini sobre o povo e
sobre Ida - a primeira a acreditar que estava diante de um grande homem e não
se arrepende em vender todo seu patrimônio para dar ao então agitador político
as condições para ele fazer sua imagem. E aqui de novo chamo atenção para o
poder da palavra. É construindo um jornal, Il popolo d'Itália, que
Mussolini divulga as suas ideias e constrói o seu fascismo.
No segundo
momento, quando Ida descobre que antes dela já havia outra mulher no páreo,
será o discurso dela sobre Mussolini e sobre o regime. Não à toa, Ida escreve
por várias vezes a todas as instâncias para se fazer crer mulher legítima do
Duce: à polícia, ao papa, ao próprio Duce. Escrita posta nas paredes da cela de
seu manicômio. A palavra de Ida, entretanto, diferente da de Mussolini que
soube se metamorfosear para atender sua ambição maior pelo poder e pela tirania
foi imutável. E se Ida, em momento nenhum, se rebaixa ao ditador, nem quando no
cinema todos fazem o gesto de saudação ao Duce, e se apresenta de igual para
igual ao Mussolini (afinal ela o compreendia tanto na sua ambição que, na
ambição própria de ser reconhecida primeira mulher do Duce, se funde a ele) a
imutabilidade de seu discurso fará de Ida, no fim de tudo, superior ao grande
ditador. Vale a pena assistir.
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