Paranóia, de Roberto Piva: a resenha que não foi publicada em 1963
Por Cláudio Willer
No final de
1962 ou começo de 1963, fui apresentado por Dora e Vicente Ferreira da Silva ao
editor de uma nova revista chamada Tempo Brasileiro, Vicente Barreto.
Simpático, disse que gostaria que eu escrevesse na revista. Recebeu-me muito
bem no Rio de Janeiro. Aproveitando uma viagem a Salvador, mandei-lhe algo
sobre artes plásticas na Bahia. Publicaram.
Pouco depois, foi lançado Paranóia. Preparei a resenha reproduzida a
seguir para Tempo Brasileiro. Barreto, algo constrangido, disse-me que a
editora de literatura e resenhas da revista (uma escritora conhecida, aliás
simpática e que mais tarde teria uma boa atuação contra a censura) havia recusado
o texto.
Esse foi, obviamente, o final da minha breve relação com Tempo Brasileiro.
Ainda bem: anos depois, essa revista apareceria na relação daquelas ligadas ao
grupo Encounter; ou seja, os periódicos subvencionadas pela CIA através do
USIS, para fazer frente às publicações que seriam de esquerda.
A recusa da minha resenha não foi, evidentemente, o único motivo de afastar-me,
não só da revista, mas daquele pessoal: o ambiente cheirava a IPES e IBAD
naquela véspera do golpe de 64 (Dora Ferreira da Silva não tinha nada a ver com
isso – outros do mesmo grupo tinham, sim: conspiravam).
Arrumando papéis, outro dia, achei a resenha (datilografada, uma cópia em
carbono). Resolvi publicá-la. Vale como documento. Mostra que em 1963 eu já era
assim. Menos equipado, mas pensando desse jeito. O estilo de entrar chutando a
porta pode ter contribuído para a recusa do texto.
Paranóia seria resenhado em 1965, em La Brèche. Na imprensa
brasileira, por muito tempo, nada. Acho que o gaúcho Paulo Hecker Filho
publicou algo, em Porto Alegre – ou já foi sobre Piazzas? ou sobre
meu Anotações para um Apocalipse? ou sobre ambos? Não me lembro. É certo
que não estávamos nem aí para divulgação, promoção pessoal, política literária,
imprensa do establishment. Acreditávamos em nossa vocação subterrânea.
Sobre Piva e Paranóia, só em 1976, através da antologia 26 Poetas
Hoje de Heloísa Buarque de Holanda, para, no ano seguinte, a meu convite, ele
passar a colaborar em Versus de Marcos Faerman. Teve que passar todo
o ciclo da contracultura e formar-se uma cultura de resistência. No entretempo,
só alguma coisa – de Piva e minha – no jornal Artes de Carlos von
Schmit, em 1970, além da matéria de Ezequiel Neves em Rolling Stones sobre
seus shows de rock, agora resgatada em Os dentes da memória.
Desde então, alguma coisa mudou. Por isso mesmo, interessa trazer informações e
documentos como este, para evitar que tudo volte a ser como antes.
***
Paranóia - Roberto Piva
Finalmente, lançou Massao Ohno este livro de há muito anunciado. São 20 poemas
ilustrados por 72 fotografias de Wesley Duke Lee e apresentados por Thomaz
Souto Corrêa. Obra que a muitos parecerá insólita, difere sob vários aspectos
daquilo que se tem convencionado chamar de “poesia”. Essa diferença torna-se
patente logo no início do primeiro poema do livro:
“as mentes ficaram dependuradas nos esqueletos de fósforo
invocando as coxas do primeiro amor brilhando como uma flor de
saliva” (Visão 1961)
O autor procura dar largas à imaginação obedecendo a uma inspiração ao nível do
inconsciente e desenvolvendo uma imagética de livre associação:
“nos
espelhos meninas desarticuladas pelos mitos recém-nascidos vagabundeavam
acompanhadas pelas pombas a serem fuziladas pelo veneno da noite no coração
seco do amor solar” (Visão 1961)
“estátuas com conjuntivite olham-me fraternalmente
defuntos acesos tagarelam mansamente ao pé de um cartão de
visitas bacharéis praticam sexo com liquidificadores como os pederastas
cuja santidade confunde os zombeteiros” (O volume do grito)
Hoje não se pode mais considerar a escrita automática do surrealismo como um
passatempo intelectual, mas como fundamento daquilo que Herbert Read chamou de
“nexo de essência”, tentativa de restituir à palavra seu verdadeiro peso e
valor, através do rompimento dos estreitos liames do pensar lógico conceitual.
Esse tratamento surrealista da linguagem concorda nitidamente com o tipo de
experiência poética empreendida por Roberto Piva, marcada pela violência e pela
marginalidade. É assim que ele se propõe a “dizer uma palavra sobre os roubos /
enquanto os cardeais nos saturam de conselhos bem-aventurados” (Poema de ninar
para mim e Brüegel), pois “eu nunca poderei ser piedoso / meus olhos retinem e
tingem-se de verde” enquanto “os adolescentes nas escolas bufam como cadelas
asfixiadas” (A Piedade).
Essa experiência está situada em uma São Paulo subterrânea e insólita para a
maioria dos seus habitantes, os quais desconhecem “a Praça da República dos
meus sonhos / onde tudo se fez febre e pombas crucificadas” (Praça da República
dos meus sonhos) e não enxergaram “Lautréamont em sonho nas escadas de Santa
Cecília / ele me espera no Largo do Arouche no ombro de um santuário”
(Stenamina boat). Aliás, cumpre acrescentar que as fotografias de Wesley Duke
Lee que ilustram o livro captam com precisão essa desocultação mágica de São
Paulo.
A nova edição de Paranóia publicada pelo Instituto Moreira Salles |
É cedo para avaliarmos a importância deste lançamento em face da situação atual
da poesia brasileira; todavia, podemos examinar desde já algumas de suas
implicações. Para isso, partamos do fato de concepções literárias e processos
de escrita já velhos de 40 anos ainda não terem chegado ao Brasil, marcados que
somos por uma permanente defasagem lítero-intelectual. O que presenciamos,
pois, é um debate entre tendências igualmente estéreis: de um lado, uma poesia
que, pretendendo ser revolucionária e participar do processo de mudança sócio
econômica que atravessamos, não revoluciona nem participa, por ser demasiado
hermética para alcançar qualquer penetração popular, e por serem seus autores
intelectuais de gabinete possuídos por uma visão alienada e idealizada do que
venha a ser um processo revolucionário. De outro lado, uma poesia esteticista e
depurada, levando a nada além de um preciosismo inconsequente.
Nesse contexto, o livro de Roberto Piva representa um passo no sentido de uma
atualização e uma dinamização da nossa poesia. Mais ainda, a poesia de Piva é a
única verdadeiramente “social” dentre as muitas que pretendem sê-lo, pois
define uma atitude em relação aos valores e instituições do nosso tempo, dando
expressão aos anseios inconformistas e renovadores de vastos setores da nossa
juventude, dispostos a partir em busca da autenticidade. Nesse sentido, Paranóia é
livro didático, na medida que define seu público e lhe traz uma mensagem
explícita. Enfim, a todos aqueles que acham que “manifestos niilistas
distribuindo pensamentos luminosos” que “puxam a descarga sobre o mundo”
(Paranóia em Astrakan) nada significam além da mera destruição gratuita,
lembramos que “nosso desprezo faz nascer uma lua inesperada no horizonte
branco". (Paranóia em Astrakan)
* Este texto foi publicado originalmente no portal Cronópios.
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